Fundamar - Fundação 18 de Março

 

PROJETO FAZENDA ESCOLA FUNDAMAR / MONOGRAFIAS SOBRE EDUCAÇÃO

Escola Estadual Fundamar
Desenraizamento e Memória

por Maria Lúcia Prado Costa/2000
C/ dados atualizados em 2003
 
No dia-a-dia da Escola Fundamar é muito comum se ouvir dos professores e dos monitores de oficinas comentários sobre as dificuldades dos alunos em reterem os temas estudados:

 “- Eles não fixam o que aprendem!"
"- Eles aprendem hoje mas amanhã já não se lembram mais!"
"- É tão bom quando a gente descobre que eles fixaram alguma coisa do que estudamos".

De onde vem esta dificuldade de retenção? Hipóteses sobre a pouca significação do conteúdo ou sobre as deficiências dos métodos de ensino não nos faltam e por certo é nisso que está pensando o leitor. Mas estas hipóteses devem responder somente por parte da questão, porque suponho que talvez a maior parte dela possa ser atribuída à vida itinerante de nossos alunos.

A constante mobilidade dessas crianças, mesmo que algumas delas consigam se manter na extensa área de abrangência da Fundamar, é facilmente perceptível no controle de matrícula da Escola, que apresenta variação diária, desafiando nossa capacidade de registro e administração. Os dados de 2002 indicam que para os 517 alunos matriculados no início do ano letivo, houve casos de 157 mobilidades, como transferências (60), novas admissões (74) e abandonos (23, sendo que 16 casos de abandono na pré-escola).

Assim a taxa de mobilidade de alunos em 2003 atingiu 30% de nossa clientela, número que desafia qualquer pedagogia. É importante lembrar que estas transferências não são provocadas por preferência por outra escola, acontecem porque o contrato de trabalho dos pais ou preferencialmente do pai foi rompido.

Observe que a taxa de abandono, excluída a da educação infantil, portanto relativa à soma dos 1º e 2º ciclos é de apenas 0,19%. Atente ainda ao fato que a Escola é muito pouco seletiva na matrícula, aceitando muitos casos de alunos com deficiências várias e que apresentam defasagem entre idade e escolaridade - casos mais fadados ao abandono.

Este índice irrisório de evasão pode, num raciocínio otimista, indicar que a Escola consegue atrair sua clientela, pois processa mais inclusões do que exclusões. Pelo que se ouve da comunidade, a "Fundamar é a melhor escola do Brasil. Pode Ter igual, mas melhor não!" Assim, continuando no otimismo, nossa pedagogia é percebida como boa. E então, de onde vem a dificuldade de retenção do ensinado?

Ecléa Bosi, em seu antológico e brilhante livro "Lembranças de Velhos" (1979) vem em meu socorro: 

"O desenraizamento é uma condição desagregadora da memória. (...) Ter um passado, eis outro direito da pessoa que deriva de seu enraizamento. Entre as famílias mais pobres a mobilidade extrema impede a sedimentação do passado, perde-se a crônica da família e do indivíduo em seu percurso errante. Eis um dos mais cruéis exercícios de opressão econômica sobre o sujeito: a espoliação das lembranças."(grifos meus) 

Acompanhando, não exatamente de perto, mas com alguma proximidade, a crônica das famílias de nossa clientela e através dos relatos dos alunos em atividade dos Cadernos de Estudos Sociais, não consigo definir um padrão das razões desta mobilidade. Vinculá-la às atividades sazonais da cultura do café é simplificar a questão. As crianças mudam durante todo o ano, por razões várias, que vão desde conflitos com os patrões, até convites para morar com parentes, ou a "sorte" de conseguir a casa própria em bairro popular da periferia da cidade - mesmo que esta "sorte" signifique o ingresso numa outra esfera de desagregação e miséria, Mas nunca é demais lembrar que na roça não há como se tornar dono da própria habitação. O lema do mercantilismo europeu do século XII de que "o ar da cidade liberta o homem" parece ainda fazer sentido por aqui.

Já cheguei a pensar que esta vocação itinerante de nossa clientela, mais do que um defeito, era uma qualidade, um traço remanescente da filosofia de nosso caipira, amante da liberdade e da conquista de novos mundos. Ou seja, a mudança como afirmação da liberdade, como arma de contestação. Mas seria isto real? Seria possível encontrar indícios de rebeldia e vocação libertaria num contingente de trabalhadores assalariados, aprisionados num trabalho exaustivo de sol a sol, monótono, sem perspectiva de promoção ou aumento de ganho, que só conhece como variação as mudanças dos ciclos das culturas - essas mesmas quase que restritas à periferia da hegemonia do café? 

Por certo haverá quem objete ao nosso raciocínio o argumento de que, na realidade, muitas biografias se enriquecem com as mudanças, de casa, de emprego, de cidade. Sem dúvida. Mas também aí há que se entender que este sujeito que virá a se enriquecer com a mudança, detém "um capital cultural" que o permitirá escolhas, sistematizações, comparações, servindo-se para tal de sua "memória" - ou "da memória social de seu grupo". A introjeção do vivido passa, portanto obrigatoriamente pelo exercício da faculdade de se lembrar.

Este não parece ser o caso da grande maioria de nossa clientela, que num sistema viciado, troca o ruim pelo pior, sem remorso e sem saudade, como se as experiências passadas, o vivido não fosse objeto de elaboração, conclusão. Explorados economicamente e descapitalizados culturalmente, pelas espoliações da cultura de massa que a tudo torna fugaz e transitório, perdem o sentido de "pertença" a um grupo. Sem enraizamento num grupo não se processa uma memória. Não há reverência a um passado. O vivido não serve como advertência. Como ainda nos ensina Ecléa Bosi: as idéias de memória e conselho são afins, etimologicamente "eu me lembro" e "eu advirto" são verbos parentes próximos.

Mas que fique claro: a suposição de que nossa clientela não se sirva de sua "memória" não significa afirmar que ela não tenha história. Não é esta a minha convicção. Nem era a de Marx que já afirmava que "os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a realizam".

O que me parece uma hipótese interessante para ser discutida entre nós é a compreensão deste desenraizamento como pano de fundo para a pouca capacidade de retenção dos conteúdos de estudo trabalhados na Escola Fundamar. 

(1) BOSI, Ecléa. "Memória de Velhos". Edusp. 1981.
(2) HUBERMAN, Léo. "História da Riqueza do Homem". Zara Ed. 5º ed. 1973 R.J.

1 BOSI. Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. TA Queiroz Ed. 1979. SP. Pg. 362

2 HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Zahar Ed. RJ. 1973. 3ª ed. Pg. 37

3 Antônio Cândido discute com brilhantismo a vocação nômade do caipira no clássico Os Parceiros do Rio Bonito. Ed. Duas Cidades. 1964.

4 O conceito de "capital cultural" aqui pretende ser o trabalhado por Pierre Bourdieu, autor da moda na sociologia brasileira.

 
 
HyperLink
 
HyperLink
 
HyperLink
 
HyperLink
 
HyperLink
 
 
   
 
 
   
 
 
     
 
© 2007 Fundação 18 de Março. Todos os direitos reservados.  
Sede: Rua Manoel Couto, 105 - Cidade Jardim
Belo Horizonte - MG - CEP 30380-080
Tel.: 3282-4363 - Fax: 3281-2015
Fazenda Escola Fundamar: Rodovia MG 453 - Km 7
Paraguaçu - MG - CEP 37120-000
Telfax.: (35) 3267-2309