PROJETO FAZENDA ESCOLA FUNDAMAR /
MONOGRAFIAS SOBRE EDUCAÇÃO
Escola Estadual Fundamar
Desenraizamento e Memória
por Maria Lúcia Prado Costa/2000
C/ dados atualizados em 2003
No dia-a-dia da Escola Fundamar é muito comum se ouvir dos professores e dos
monitores de oficinas comentários sobre as dificuldades dos alunos em reterem os
temas estudados:
“- Eles não fixam o que aprendem!"
"- Eles aprendem hoje mas amanhã já não se lembram mais!"
"- É tão bom quando a gente descobre que eles fixaram alguma coisa do que
estudamos".
De onde vem esta dificuldade de retenção? Hipóteses sobre a pouca significação
do conteúdo ou sobre as deficiências dos métodos de ensino não nos faltam e por
certo é nisso que está pensando o leitor. Mas estas hipóteses devem responder
somente por parte da questão, porque suponho que talvez a maior parte dela possa
ser atribuída à vida itinerante de nossos alunos.
A constante mobilidade dessas crianças, mesmo que algumas delas consigam se
manter na extensa área de abrangência da Fundamar, é facilmente perceptível no
controle de matrícula da Escola, que apresenta variação diária, desafiando nossa
capacidade de registro e administração. Os dados de 2002 indicam que para os 517
alunos matriculados no início do ano letivo, houve casos de 157 mobilidades,
como transferências (60), novas admissões (74) e abandonos (23, sendo que 16
casos de abandono na pré-escola).
Assim a taxa de mobilidade de alunos em 2003 atingiu 30% de nossa clientela,
número que desafia qualquer pedagogia. É importante lembrar que estas
transferências não são provocadas por preferência por outra escola, acontecem
porque o contrato de trabalho dos pais ou preferencialmente do pai foi rompido.
Observe que a taxa de abandono, excluída a da educação infantil, portanto
relativa à soma dos 1º e 2º ciclos é de apenas 0,19%. Atente ainda ao fato que a
Escola é muito pouco seletiva na matrícula, aceitando muitos casos de alunos com
deficiências várias e que apresentam defasagem entre idade e escolaridade -
casos mais fadados ao abandono.
Este índice irrisório de evasão pode, num raciocínio otimista, indicar que a
Escola consegue atrair sua clientela, pois processa mais inclusões do que
exclusões. Pelo que se ouve da comunidade, a "Fundamar é a melhor escola do
Brasil. Pode Ter igual, mas melhor não!" Assim, continuando no otimismo, nossa
pedagogia é percebida como boa. E então, de onde vem a dificuldade de retenção
do ensinado?
Ecléa Bosi, em seu antológico e brilhante livro "Lembranças de Velhos" (1979)
vem em meu socorro:
"O desenraizamento é uma condição desagregadora da memória. (...) Ter um
passado, eis outro direito da pessoa que deriva de seu enraizamento. Entre as
famílias mais pobres a mobilidade extrema impede a sedimentação do passado,
perde-se a crônica da família e do indivíduo em seu percurso errante. Eis um dos
mais cruéis exercícios de opressão econômica sobre o sujeito: a espoliação das
lembranças."(grifos meus)
Acompanhando, não exatamente de perto, mas com alguma proximidade, a crônica das
famílias de nossa clientela e através dos relatos dos alunos em atividade dos
Cadernos de Estudos Sociais, não consigo definir um padrão das razões desta
mobilidade. Vinculá-la às atividades sazonais da cultura do café é simplificar a
questão. As crianças mudam durante todo o ano, por razões várias, que vão desde
conflitos com os patrões, até convites para morar com parentes, ou a "sorte" de
conseguir a casa própria em bairro popular da periferia da cidade - mesmo que
esta "sorte" signifique o ingresso numa outra esfera de desagregação e miséria,
Mas nunca é demais lembrar que na roça não há como se tornar dono da própria
habitação. O lema do mercantilismo europeu do século XII de que "o ar da cidade
liberta o homem" parece ainda fazer sentido por aqui.
Já cheguei a pensar que esta vocação itinerante de nossa clientela, mais do que
um defeito, era uma qualidade, um traço remanescente da filosofia de nosso
caipira, amante da liberdade e da conquista de novos mundos. Ou seja, a mudança
como afirmação da liberdade, como arma de contestação. Mas seria isto real?
Seria possível encontrar indícios de rebeldia e vocação libertaria num
contingente de trabalhadores assalariados, aprisionados num trabalho exaustivo
de sol a sol, monótono, sem perspectiva de promoção ou aumento de ganho, que só
conhece como variação as mudanças dos ciclos das culturas - essas mesmas quase
que restritas à periferia da hegemonia do café?
Por certo haverá quem objete ao nosso raciocínio o argumento de que, na
realidade, muitas biografias se enriquecem com as mudanças, de casa, de emprego,
de cidade. Sem dúvida. Mas também aí há que se entender que este sujeito que
virá a se enriquecer com a mudança, detém "um capital cultural" que o permitirá
escolhas, sistematizações, comparações, servindo-se para tal de sua "memória" -
ou "da memória social de seu grupo". A introjeção do vivido passa, portanto
obrigatoriamente pelo exercício da faculdade de se lembrar.
Este não parece ser o caso da grande maioria de nossa clientela, que num sistema
viciado, troca o ruim pelo pior, sem remorso e sem saudade, como se as
experiências passadas, o vivido não fosse objeto de elaboração, conclusão.
Explorados economicamente e descapitalizados culturalmente, pelas espoliações da
cultura de massa que a tudo torna fugaz e transitório, perdem o sentido de
"pertença" a um grupo. Sem enraizamento num grupo não se processa uma memória.
Não há reverência a um passado. O vivido não serve como advertência. Como ainda
nos ensina Ecléa Bosi: as idéias de memória e conselho são afins,
etimologicamente "eu me lembro" e "eu advirto" são verbos parentes próximos.
Mas que fique claro: a suposição de que nossa clientela não se sirva de sua
"memória" não significa afirmar que ela não tenha história. Não é esta a minha
convicção. Nem era a de Marx que já afirmava que "os homens fazem sua própria
história, mas não sabem que a realizam".
O que me parece uma hipótese interessante para ser discutida entre nós é a
compreensão deste desenraizamento como pano de fundo para a pouca capacidade de
retenção dos conteúdos de estudo trabalhados na Escola Fundamar.
(1) BOSI, Ecléa. "Memória de Velhos". Edusp. 1981.
(2) HUBERMAN, Léo. "História da Riqueza do Homem". Zara Ed. 5º ed. 1973 R.J.
1 BOSI. Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. TA Queiroz Ed. 1979.
SP. Pg. 362
2 HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Zahar Ed. RJ. 1973. 3ª ed. Pg. 37
3 Antônio Cândido discute com brilhantismo a vocação nômade do caipira no
clássico Os Parceiros do Rio Bonito. Ed. Duas Cidades. 1964.
4 O conceito de "capital cultural" aqui pretende ser o trabalhado por Pierre
Bourdieu, autor da moda na sociologia brasileira.
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