Fundamar - Fundação 18 de Março

 

PROJETO FAZENDA ESCOLA FUNDAMAR / MONOGRAFIAS SOBRE EDUCAÇÃO

Políticas Sociais e a Escola Fundamar: Uma Contextualização Histórica
por Maria Lúcia Prado Costa/2001

O tema da educação para crianças e jovens da zona rural, encontra ressonâncias na política social de educação; na política social especial para crianças e adolescentes; na política social agrária e ainda, em certo sentido, na política social do trabalho. É possível identificar pontos de convergência entre meu trabalho como assistente social numa escola de ensino integral para crianças da zona rural - Escola Fundamar - e as políticas sociais acima enunciadas.

Além da óbvia vinculação à educação, o caráter da instituição mantenedora da escola como uma ONG, suprindo ou dando sustentação à ação do poder público no atendimento de direitos sociais não restritos à educação fundamental stritu sensu, como alimentação, saúde, cultura, lazer e oficinas de artesanato e de arte-educação, a inscreve em muitos aspectos na política social especial para crianças e adolescentes. A parceria entre a instituição mantenedora e o Estado na realização deste projeto por certo nos remete à questão das relações entre o público e o privado na execução da política social para o setor. A inserção de nossa clientela no meio rural nos vincula também à política social agrária, uma vez que muitos dos problemas pedagógicos vivenciados na escola refletem as crises de espoliação dos trabalhadores rurais. Consequentemente, estas crianças e jovens estão muito vulneráveis ao ingresso precoce no mercado de trabalho, e muitas delas vivem sob a inconstância do vínculo empregatício de seus pais, o que também nos faz considerar alguns aspectos da política social do trabalho.

Entretanto creio que a minha experiência profissional pode se circunscrever na interseção entre a política social de educação e a política social para a criança e o adolescente, naquela tipologia em que Moacir Gadotti enuncia como "educação básica", que teria no CIEPS sua identidade mais próxima, entretanto com distinções fundamentais: a parceria entre uma ONG e o Estado, e ainda, sua localização no meio rural. Diz Gadotti: "Atualmente, as novas propostas de escola de tempo integral (CIEPS e CIACS), únicos (sic) projetos educacionais de impacto que surgiram na última década (anos 80), vêm se constituindo também, aos poucos, num paradigma de renovação educacional, podendo redirecionar, com o tempo, o próprio sistema educacional brasileiro. Além do princípio da educação pública de tempo integral e da autonomia escolar, esse novo modelo propõe o atendimento global à criança, integrando educação, ações de saúde, alimentação, cultura, trabalho, esporte e lazer."  

O projeto Escola Fundamar, instituído pela Fundação 18 de Março em parceria com o Governo Estadual de Tancredo Neves, em 1983/4, na travessia rumo à redemocratização do País, absorveu alguns dos paradigmas de assistência integral à infância e à adolescência, então em ebulição na sociedade brasileira, e anos depois institucionalizados no Estatuto da Criança e de Adolescente (1990)2.

Entretanto a historicização de como a criança e o jovem vem sendo tratado pela sociedade brasileira, constituindo objeto específico de atenção do Estado, e a evolução das políticas públicas para este segmento social, podem nos servir como reflexão para melhor compreensão de minha realidade de atuação profissional. Nesta retrospectiva histórica estarei tentando priorizar a questão da educação para as crianças pobres - nela se incluindo a indefectível meta de "formação para o trabalho" - e paralelamente a questão da regulamentação da idade mínima para inserção no mercado de trabalho, tomando como marco espacial o estado de Minas Gerais.

A rica e recente bibliografia sobre a história social da criança por certo ainda apresenta muitos hiatos que deixam a descoberto muitos aspectos sobre como o problema da infância pobre foi enfrentado nas diversas regiões brasileiras. Minas Gerais, apesar de pioneiro em muitas conquistas no campo da educação, não foge à regra. Ainda aguarda a atenção dos historiadores e demais cientistas sociais sobre a história social da criança mineira.

A historiadora Laura de Mello e Souza, no artigo "O Senado da Câmara e as Crianças Expostas: Minas Gerais no século XVIII"3, afirma que na capitania mais povoada da colônia a exposição de crianças nas Rodas dos Enjeitados assumiu no final do período proporções catastróficas. "Em sua célebre Memória Histórica da Capitania de Minas Gerais, que veio a público em 1781, José Joaquim da Rocha incluía a criação dos enjeitados entre as despesas de pelo menos três Câmaras Municipais: nas de Vila Nova da Rainha (Caeté), Vila do Príncipe (Serro) e São João del Rei. O fato de omitir tal encargo quando tratou das demais vilas deve antes ser creditado a descuido do que à ausência dos demais senados na criação dos bebês abandonados." A Roda dos Expostos de Vila Rica se instala em 1831, no mesmo ano de instituição da de São João del Rei, esta administrada pela Santa Casa de Misericórdia até 1887.4

Segundo Maria Luiza Marcílio, no fim do século XIX e começo do século XX, assiste-se à decadência do sistema de assistência das crianças desvalidas pelas Santas Casas de Misericórdia, havendo a instalação de orfanatos administrados por congregações de freiras vindas da Europa. O sistema deixa de ser municipal e passa a ser provincial. Inaugura-se a medicina filantrópica - que preconiza o combate às amas mercenárias, tidas como responsáveis pela alta mortalidade infantil - e a difusão das práticas burguesas de puericultura junto à população de baixa renda. A figura exponencial deste movimento é o Dr. Moncorvo Filho, fundador do Instituto de Proteção à Infância no Rio de Janeiro, em 1901, e da filial em Belo Horizonte, em 1904. Por iniciativa dele, realiza-se, e 1922, o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, no Rio de Janeiro.4*

Neste período de transição, tendo como pano de fundo a premente questão de formação de um novo contingente de trabalhadores livres, surgem por todo o Império asilos mantidos pelos governos provinciais que segregando os menores do convívio social pretendiam lhes ministrar o ensino elementar e o profissionalizante. Em Minas Gerais a experiência mais significativa deste tipo de instituição data dos primeiros anos da República: o Instituto João Pinheiro (1909-1934), instalado na Fazenda Gameleira, nas imediações de Belo Horizonte, recém-inaugurada como capital do estado (1897). Os objetivos da instituição são enunciados em seu regulamento:

"O fim do instituto é apoderar-se do menor em risco de perversão ou já viciado e, transcorrido o período educacional, restituir à sociedade um homem sadio de corpo e alma, apto para constituir uma célula do organismo social, capaz de prover à própria subsistência e impulsionar a vida econômica nacional." Os conceitos de saúde física e moral; da família como célula social; e da formação do cidadão trabalhador contidos neste enunciado coincidem com o ideal positivista da República e de higienização da pobreza, tema tratado com brilhantismo pela socióloga Margareth Rago, no livro "Do Cabaré ao Lar - A Utopia da Cidade Disciplinar - Brasil: 1890-1930".

Luciano Mendes de Faria Filho5, ao levantar a história do Instituto João Pinheiro, o contextualiza na então primeira política pública mineira da República para os menores abandonados. Diz o pesquisador: "O Instituto João Pinheiro foi o primeiro, mas não o único, passo no sentido de aliar o ensino agrícola e a assistência à criança abandonada, com o intuito de formar futuros trabalhadores". A história do Instituto João Pinheiro nos interessa de perto por se tratar, salvo engano, da primeira experiência asilar de educação agrícola para crianças pobres em Minas Gerais, setor em que mais tarde viria também ser experiência pioneira no estado, se bem que em outro contexto e orientação, o projeto de nucleação do ensino rural pela Escola Fundamar.

Ao que sugerem os historiadores, o primeiro documento que ordena a relação entre o Poder Público e a infância no País seria a lei orçamentária nº. 4.242 de 05.01.1921 que autorizou o Serviço de Assistência e Proteção à Infância Abandonada e aos Delinquentes, regulamentado em 20.11.1923 pelo decreto 16.272. Já em Minas Gerais, o primeiro instrumento legal seria o decreto 7.680 de 3 de junho de 1927: Regulamentação do Serviço de Assistência e Proteção à Infância Desvalida, que se antecipou em alguns meses ao Código de Menores, instituído pelo Presidente Washington Luís, pelo Decreto nº. 17.943-A de 12 de outubro do mesmo ano. Segundo Luciano Farias, o documento mineiro faz, inicialmente, uma distinção entre os "menores" pervertidos, abandonados, delinquentes e "anormais" e para cada uma destas "categorias" aponta a necessidade da criação de uma instituição diferente.

Assim já no final dos anos 20 pode-se observar em Minas Gerais, no plano da legislação e de algumas iniciativas práticas, o estabelecimento de uma primeira tentativa de política pública referente à infância pobre sob a responsabilidade de Secretaria de Assistência e Segurança Pública. A subordinação desta política à segurança pública não é mera coincidência. Como elemento central desta política estava a idéia de incorporação das classes populares à "Nação Brasileira" através da formação "pelo e para" o trabalho e da assistência social nitidamente coercitiva e autoritária.

Quanto à política social para educação propriamente dita, Minas Gerais só virá a tê-la com o advento da República. No Império, havia muitas salas de aula improvisadas e "algumas funcionavam como vendas, onde os professores negociavam até água com os alunos." No fim do século XIX, Minas Gerais tinha uma população de 2,5 milhões de habitantes e uma demanda de 337.142 vagas nas escolas. As estatísticas da época apresentam a matrícula de 39.755 e a frequência de 24.700 alunos de ambos os sexos.

O movimento republicano defende a escola gratuita e de qualidade como direito do cidadão. Em 1906, sendo governador João Pinheiro, é iniciada a reforma do ensino primário, com a instituição dos grupos escolares. Esta mudança culminou com a chamada reforma Francisco Campos - Mário Casasanta, de 1928, que estava afinado com a filosofia básica do seu patrocinador, o então governador Antônio Carlos Ribeiro de Andrada: "Façamos a revolução antes que o povo a faça". Assim, o Estado assumiu o compromisso de oferecer e manter a escola pública, priorizando a reformulação do ensino primário e normal, considerados estratégicos nas propostas de "democratização da sociedade". Entre 1928 e 1930 foram criadas 3.355 unidades de ensino primário e 21 escolas normais em Minas Gerais.

Os anos 30-40 são marcados por importantes transformações como a crise do café, a política trabalhista de Getúlio Vargas (CLT - 1943; organização sindical) e o êxodo rural rumo às cidades, ampliando a demanda pela escola pública. Na era Vargas (1930 - 1945) Minas investiu numa política de modernização do sistema educacional.7 No plano federal é instituído em 1941 o SAM - Serviço de Assistência ao Menor.

A esta época a questão da idade mínima para o trabalho de menor já vinha sendo objeto de preocupação do legislador. É necessário observar que o processo de industrialização no Brasil, centrado na produção de bens de consumo alimentícios e têxteis, teve como mão-de-obra preferencial o trabalho feminino e o infantil. O Código de Menores de 12 de outubro de 1927 foi a primeira norma a se preocupar realmente com a situação das crianças trabalhadoras, proibindo o trabalho para menores de 12 anos. A Constituição Federal de 1934 elevou para 14 anos a idade mínima para o trabalho, limite esse mantido nas Cartas de 1.937 e 1946.8

Os anos 50 são marcados pela abertura da economia brasileira ao capital americano, que passa também a promover arrojados projetos educacionais, com destaque para Minas Gerais. Em 1956 (Presidente Juscelino Kubitscheck: 1956-1961) é lançado o polêmico PABAE - Programa de Assistência Brasileiro-Americano à Educação Elementar, envolvendo o governo federal, estadual e a United States Operation Mission to Brazil. Este tinha por objetivo a formação de professores e a produção de material didático para o ensino primário e normal, com cursos e estágios nos EUA. No setor específico da educação para o homem do campo, em 1949, é criado o primeiro escritório da ACAR - Associação de Crédito e Assistência Rural no Brasil, em Minas Gerais, sob a inspiração do milionário americano Nelson Rockefeller. Mais tarde, no contexto da Guerra Fria entre EUA e URSS, da Revolução Cubana (1961), da instituição do Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e do Golpe Militar (1964), o programa é intensificado como um "sistema educativo e informal que buscava obter mudanças de atitudes, aperfeiçoamento as aptidões e melhorando as condições de vida da população rural, através de tecnificação do trabalho agrícola e de fomento da organização comunitária." Os críticos da ACAR denunciavam os programas como estratégias para consumo de bens e produtos agrícolas.9

A instauração da ditadura militar em 1964 trouxe, em outros malefícios para a sociedade brasileira, o retrocesso tanto na legislação que trata dos menores então chamados "em situação de risco" quanto a que definia a questão do limite mínimo para o trabalho. A Constituição de 1967 retrocedeu a idade mínima para 12 anos, mas definiu pela primeira vez na história do Brasil a obrigatoriedade do Estado de oferecer escolarização para crianças de 7 a 14 anos. Em 1964, em substituição ao SAM - Serviço de Assistência ao Menor (1941) é criada a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor - FUNABEM. Os pálidos objetivos educacionais da instituição se esvaíram suplantados pela escassez de recursos financeiros alocados e pela cultura já introjetada de maus-tratos e coerção física e psicológica.

Não obstante os avanços científicos - não só na área jurídica, mas médica, psicológica, sociológica e pedagógica - que já se faziam presentes, no final dos anos 70, entendeu o regime militar (Governo do General João Figueiredo: 1979- 1984) de instituir uma lei que ignorava todas aquelas conquistas: o Código de Menores de 1979. Paradoxalmente, contemporâneo ao início da distensão política, o caráter do Código é repressivo e retrógrado. Mesmo com 52 anos de diferença entre si, os códigos de 1927 e 1979 centralizam na figura do juiz de menores os aspectos judicial-processuais e também administrativo-assistenciais relativos às crianças e adolescentes. Em ambos os códigos, o juiz de menores concentrava funções dos três poderes: a assistência e a vigilância, própria do Executivo; a produção de normas jurídicas, típica do Legislativo; e, a aplicação da norma aos casos concretos, privativa do Poder Judiciário, ao qual de fato estaria subordinado. O Poder Público ao fortalecer a figura do juiz de menores pretendia se livrar do "problema do menor", especialmente dos chamados "carentes e delinquentes".

Apenas estes - sob o rótulo de "menores em situação irregular" - eram objeto de atenção do Código. Estavam sob este título, as crianças abandonadas, as vítimas de maus-tratos, as miseráveis e, evidentemente, os infratores. Enquadrando-se em qualquer das hipóteses enumeradas no artigo 2º do Código - dez situações descritas, no total - o menor passava à autoridade do juiz de menores, que aplicaria, "em sua defesa", os preceitos do Código, com o auxílio dos famosos Comissários de Menores. Ao facultar ao juiz de menores o atributo de editar normas de caráter geral, suplementando a legislação (art. 8º do Código) feria-se um princípio básico do Estado de Direito, que é a harmonia entre os Poderes.10

Os movimentos sociais e políticos que redemocratizaram o País engendraram avanços inéditos na Constituição Federal de 1988, mais tarde ordenados e detalhados no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, entendido como um sistema jurídico-político-institucional de garantia dos direitos da infância e da adolescência, para protegê-los integralmente. Substituindo a doutrina de situação irregular do Código de Menores pela doutrina de proteção integral, o ECA garante às crianças, além de todos os direitos consagrados aos adultos, uma série de direitos próprios, por estarem em desenvolvimento físico e mental. A política integral às crianças baseia-se na descentralização político-administrativa e na participação da sociedade na elaboração e execução das políticas públicas relacionadas à infância e adolescência. Quanto às políticas públicas, são definidas três linhas de ação. Em primeiro lugar, as políticas sociais básicas extensivas a todas as crianças e adolescentes. Em segundo lugar, as políticas sociais assistenciais que incluem programas e serviços para os vulnerabilizados em risco pessoal e social de exclusão. E em terceiro lugar a política de atendimento àqueles que têm seus direitos ameaçados ou violados (desaparecidos; abandonados; abusados e explorados sexualmente; explorados no trabalho; prostituídos, em situação de rua; drogadictos e autores de atos infracionais).

Entretanto, para os objetivos deste exercício, as inovações mais interessantes trazidas pela ECA se referem à montagem de um Sistema de Garantia de Direitos, calcado sobre os eixos da Promoção, da Defesa e do Controle Social - avanço inédito enquanto política pública. Ao co-responsabilizar a família, a sociedade e o Estado pela implementação, execução e controle da política social para o setor, vários atores governamentais e não-governamentais ganham visibilidade: Poder Judiciário (especialmente o Juizado da Infância e da Juventude), o Ministério Público, Secretaria de Justiça; Secretaria de Segurança Pública, Defensoria Pública; Conselhos Tutelares; Ordem dos Advogados do Brasil; Centros de Defesa e outras associações legalmente constituídas. O controle da política social passa a ser executado pela sociedade civil em "fóruns" e outras instâncias não institucionais.

Lei implementada por força dos movimentos sociais, de estrutura jurídica extremamente sofisticada e avançada, o Estatuto da Criança e do Adolescente parece ter sido atropelado pelo desmonte das políticas sociais e da crise fiscal dos anos 90. A própria interdição ao trabalho para menores de 14 anos (art. 60 do ECA) já foi alterada para o limite mínimo de 16 anos (Emenda Constitucional nº. 20 de 15.12.1998), tendo como objetivo implícito retardar o ingresso formal dos menores de 16 no mercado de trabalho e consequentemente sua inclusão no contingente de segurados da Previdência Social.

Legislação calcada sobre o princípio da participação popular pressupôs uma nação solidária, comprometida de Norte a Sul com a criança e o adolescente. Hoje, passados dez anos de instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, o quadro não é muito animador. No balanço do CENDHEC, o eixo de Promoção foi bastante incrementado. Existe uma quantidade expressiva de Conselhos implantados e em funcionamento: Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, Conselhos setoriais, a própria aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social e a consequente implementação de Conselhos de Assistência, a existência de programas e projetos específicos de atendimento de necessidades. Já no eixo da Defesa, percebe-se que houve pouca implementação e investimento: ainda é insignificante o número de Conselhos Tutelares e mais insignificante ainda o número de Centros de Defesa, e de organizações da sociedade civil com previsão estatutária para a defesa jurídico-social dos direitos da infância e da juventude. "Mesmo os Conselhos Tutelares tendem a se tornarem burocráticos e assistencialistas: vão fazer apenas o encaminhamento para as instituições de atendimento existentes, sem, contudo alargar as políticas públicas ou aumentar os recursos nos orçamento público."11

Este vaticínio parece se adequar à experiência do município de Paraguaçu. O Relatório do Conselho Tutelar dos Direitos da Criança e do Adolescente de dezembro de 1999 apresentava entre os casos de maior incidência de atendimento os de negligência familiar (170) e evasão escolar (117), não havendo nenhuma referência a procedimentos para ampliação da política pública no município.12 Além do Conselho Tutelar, existem em Paraguaçu os Conselhos Municipais da Criança e do Adolescente, de Assistência Social, o de Saúde, o de Educação e o de Turismo. Os Fundos Municipais existentes são o de Saúde, Assistência Social, da Educação e da Criança e do Adolescente. Não seria uma generalização equivocada afirmar-se que nossos conselhos municipais se encaixam no exemplo de "interferência do poder executivo em todos os níveis, que vai desde a sonegação de informações, principalmente às relativas ao orçamento , (...) até a nomeação de representantes da sociedade civil sem mediação de um processo eleitoral democrático, cooptação de conselheiros, presidências impostas, etc.", conforme a análise de Raquel Raichelis Degennszajh.

Se a ofensiva neoliberal dos anos 90 solapou muito do potencial instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o mesmo ocorreu em relação à educação. Será em 1996 que a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº. 9394) imprimirá no País um modelo de educação ditado pelo Banco Mundial, sem ressonância com as propostas dos movimentos populares que propugnavam a Escola de qualidade para todos.

No que tange a nossas áreas específicas de interesse, a educação infantil e o ensino fundamental, as principais alterações promovidas foram desastrosas, seja quanto ao objetivo em si mesmo seja quanto à forma de implementação. A municipalização formal da educação infantil na prática se traduziu pela exclusão do atendimento das faixas etárias mais novas e/ou o atendimento restrito às crianças de 5 e 6 anos. Na realidade, a municipalização foi mais “um mecanismo de exportação da crise fiscal para baixo", conforme análise de Rosa Helena Stein. No ensino fundamental, tivemos de uma hora para outra, em Minas Gerais, dentro da rede estadual, a "opção" pelo sistema de ciclos ou pelo sistema de seriação, e ainda como terceira "opção" a conjugação híbrida dos dois sistemas; a promoção automática para aliviar as estatísticas de repetência e evasão. É preciso lembrar que Minas Gerais foi o estado pioneiro em implementar esta política, mas tarde imposta a todo o país pela L.D.B., em 1996.

Como bem analisa Moacir Gadotti, às políticas educacionais no Brasil cabe muito bem a expressão piagetiana "plus ça change, plus c’est pareil" (quanto mais muda, mais igual fica). 13

Caberia ainda uma reflexão sobre a parceria entre a instituição em que trabalho e o Estado, para além da tradicional visão de articulação compensatória entre o público e o privado. Para tanto julgo de extrema importância o conceito de "publicização" trabalhado no texto de Rachel Raichelis, que aqui cito:
“Quando falamos da construção da esfera pública nos referimos às novas modalidades de relação entre o Estado e a sociedade civil que transcendem as formas estatais e privadas, para constituir uma esfera, na qual o público não pode ser associado automaticamente ao Estado, nem o privado se confunde com o mercado, ainda que transitem nesta esfera interesses de sujeitos privados." A construção do processo de publicização pressupõe visibilidade social; controle social, representação de interesses coletivos; democratização e cultura pública (esta entendida como contrária à cultura de apropriação do público pelo privado).

Se até vimos tentando ordenar, dentro de nossas limitações, as linhas-mestras das políticas sociais brasileiras de educação e da criança e do adolescente no Brasil, especificamente para Minas Gerais, a frágil conclusão a que se chega é que o atraso e a incapacidade histórica da sociedade em garantir a educação fundamental para a população vêm ampliando a demanda por políticas especiais de atendimento à infância e à juventude. Estas delineadas desde os anos 20 pelo Estado tiveram sempre como norma a segregação e a repressão, mesmo nos momentos de governos democráticos. Os legisladores produziram poucas normas ao longo da história brasileira, evidenciando o pouco zelo da Nação pela questão da criança e do jovem. E mesmo quando o fizeram, num longo intervalo de 52 anos entre o código de 1927 e o de 1979, mantiveram a mesma ideologia da coerção e da repressão, ignorando todas as modificações econômicas e políticas vivenciadas pelo país ao longo do século. Quando, entretanto conseguimos uma legislação ampla, moderna, uma verdadeira revolução jurídico-administrativa capaz imprimir uma política social participativa que desse conta dos avanços econômico-políticos e das contradições da sociedade brasileira - o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) - a crise do Estado brasileiro no contexto do neo-capitalismo mundial minou sua força de mobilização e transformação.

Do estudo feito sobre as políticas sociais, a impressão que fica é mais de desordenamento e contradição, do que articulação e complementaridade. Mesmo a definição dialética de Faleiros de que a "a questão da política social é sempre um resultado que envolve mediações complexas - socio-ecônomicas, políticas, culturais, e atores/forças sociais que se movimentam e disputam hegemonia nas esferas estatal, pública e privada" 14parece-nos insuficiente para dar conta da especificidade dessas políticas públicas brasileiras. Superada a análise de que a política social não é nem um engodo das classes dominantes nem uma conquista das classes dominadas, recorremos então à interpretação do marxismo.

Sob a análise marxista, a desigualdade sendo inerente às relações sociais, caberia à política social, no máximo, tentar reduzir as crises. Entendida como um dos instrumentos de reprodução da força de trabalho, a política social não pretende na realidade processar a nenhuma redistribuição de renda e riqueza.

Entretanto, num país, como o nosso, em que o Estado se constituiu anteriormente à Nação, em que a concentração progressiva da renda responde pela miserabilidade da maioria do povo, em que os avanços sociais são episódios excepcionais na contínua linha de privilegiamento das elites, que demonstram um excepcional fôlego para desqualificar e desmantelá-los, qual a pertinência da análise marxista - pelo menos a que conseguimos assimilar - para desvelar o que se oculta e o que se revela sob as políticas sociais no Brasil?

1 GADOTTI, Moacir. Diversidade Cultural e Educação para Todos. Ed. Graal. SP. 1992. Pg. 85.
2 É curioso notar que o primeiro aporte de recursos públicos estaduais para o projeto veio da Secretaria do Trabalho e Ação Social, à época, sob a direção de Ronan Tito, que, quando senador foi o proponente do Estatuto da Criança e do Adolescente no Congresso Nacional.
3 In DEL PRIORE (org.). História da Criança no Brasil. Contexto. SP. 1995.
4 Maria Luiza Marcílio no livro História Social da Criança Abandonada registra a Roda de Expostos de São João del Rei como "a mais bem montada da província" nos dizeres do presidente da Província em 1861. Pg. 160.
4* RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a Utopia da Cidade Disciplinar (Brasil: 1890-1930). Paz e Terra. 1985. Pg. 170.
5 FARIA FILHO, Luciano Mendes. O Instituto João Pinheiro e a Política Pública para Crianças Abandonadas na Primeira República. IN AMEPPE. Políticas Públicas de Atendimento à Criança e ao Adolescente em Minas Gerais. Educação Popular. Caderno 8. BH. 1993.
7 Cf. Jornal do Brasil. Minas Educação. 02.11.1997. pg. 28/29.
8 O Código Sanitário de 1894 já proibia o trabalho para menores de 12 anos e o Código Sanitário de 1911 proibia o trabalho noturno para menores de 18 anos. Há contradições entre os estudiosos sobre a história de legislação que regulamenta o trabalho infantil.
9 Paraguaçu, município onde se localiza a Escola Fundamar, teve seu escritório da ACAR criado pela Lei nº. 203 de 03.11.1956. Nos anos 60, a ação da ACAR nos bairros rurais hoje atendidos pela Fundamar será bastante significativa, conforme testemunhos orais e notícias do jornal local.
10 Para análise do Código de Menores de 1979, estou usando como fonte de consulta o livro Sistema de Garantia de Direitos, publicado pelo Centro Dom Helder Câmara de Estudos e ação Social - CENDHEC. Recife. 1999.
11 Idem. Ibidem. GARCIA. Margarita Bosh. O Papel dos Centros de Defesa. Pg. 213.
12 O Conselho Tutelar de Paraguaçu foi criado pela Lei Municipal 1172/91. Os 5 membros do Conselho Tutelar não têm formação acadêmica e alguns deles sequer experiência anterior de trabalho com crianças e adolescentes.
13 GADOTTI, Moacir. Op. Cit. Pg. 50.
14 Cf. BEHRING, Eliane. Rosseti. Principais Abordagens teóricas da política social e da cidadania. Pg. 31.

* Trabalho apresentado por Maria Lúcia Prado Costa para o "Curso de Capacitação Social e Política Social"
 
 
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