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ACL - FUNDO DE ARQUIVO CARLOS LACERDA
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/ Correspondência com Mário de Andrade |
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S. Paulo, 26.12.43 (não reli)
Carlos:
Tenho pensado em lhe escrever mas vou pensando e não escrevo. É que estou em pleno idílio com a saúde, você nem imagina, estou em ponto-de-bala pra... pra Arte Pura. Imagine que a minha dor-de-cabeça se acabou! Se acabou meu mano, se acabou! Aliás, confesso que o Nava está me irritando bem, não é pra você, parece, que ele fala que eu estou meio doente imaginário. Você me conhece e convivemos muito proximamente (e em que fase!) pra saber que não me preocupo com a saúde nem me poupo nem cultivo a dor. É pau isso. É certo que dor física me irrita muito, acho inútil e cuido logo de acabar com ela. O que houve é que dona Medicina não estava querendo descobrir o que eu tenho. Você veja: foi, me lembro firme o dia, dia 8 de Janeiro que amanheceu e não pude levantar a cabeça do travesseiro, tamanha a dor. E desde então, nunca mais, a não ser uns poucos dias, creio que julho, me libertei disso. Quando não era dor no duro, era talvez pior, um peso, um espírito abafado que, aí não impossibilitava por completo de trabalhar, martirizava por isso mesmo, me esforçava para trabalhar e era um sofrimento horrível, no duro, puro sem mistura. E desde janeiro (estou) tratando do fígado e do coração. Ameaça de arteriosclerose desde o primeiro médico - os outros confirmaram, não ameaça, mas doença no duro, pura sem mistura. E com isto o tratamento que fazia pro sangue era perfumaria. Foi o Nava quem me tirou não da cabeça, mas do corpo a tal de arteriosclerose. E nunca mais senti, pois que ele garantiu que eu não tinha (a tal). Mas a culpa não era minha, era dos médicos! Mas o fígado ainda estava ai nesse ainda sentia dores (e que!) quando enfim este irmão de rima falou assim na lata: Você não tem nada no fígado, felizmente! O que você tem é úlcera no duodeno. E nada de perfumaria! Vamos atacar a cura do sangue e com arsenox, você agüenta. No dia seguinte a radiografia confirmou a úlcera, principiou o regime e duas semanas depois da primeira injeção. E depois de mais duas semanas estou no que estou, você compreende, um pouco (matreiro?) de tão feliz, arranjando as coisas, dispondo tudo para o trabalho do ano que vem. Aliás, acho que primeiro vou passar uns 20 dias em (Aldezerara) em janeiro. Estou muito fraco com o regime, e a fazenda resguarda mais a gente de gripes e coisas assim, que o médico teme no estado indefeso em que ainda vivo, mas não sei ainda.
Bom, sua carta tem mais o problema do brilho, que você transviou. Quando ataco o seu brilho é sempre quando você se mete ruibarbosamente defendendo causas perdidas. Ou inexistentes. Como aquela vez em que você atacava, destruía, pra mim o livro de Joaquim Ribeiro e a dupla sobre a guerra holandesa, sem ter lido o livro, se lembra?
Você tem dessas coisas: de repente esculhamba um sujeito, um livro, uma idéia se menor dose de motivo intelectual legítimo. É quando eu falo: "Carlos não brilha, não!"
Essa história do brilho é divertida. Os "puros", os que não têm brilho, são vaidosos da sua simplicidade, da sua "brancura", da sua "pureza". Mas o certo é que por dentro ele tem uma bruta raiva dos que são brilhantes. Eu tenho brilho, e se tivesse meios, diminuiria a dose. Mas estou cada vez pior, você não imagina. Às vezes, como outro dia num prefácio sei que escrevi pro livro do Newton Freitas e vai sair assim mesmo (fui obrigado a escrever assim mesmo, ainda na doença, pela última data dada pelo Zélio Valverde) eu achei graça em mim porque teve um momento em que meti num tamanho cipoal a dentro de metáforas, com tantas palavras em sentido figurado, e de repente não sabia mais daquela bagunça. Eu tenho brilho sim e me utilizo dele, preciso dele. Adoro os que têm linguagem simples, pensamento escorreito, mas esse não me seria muito útil não, meu jeito de ser e no destino que me dei. Eu também quereria fazer uma obra-de-arte bem simples, em limpo e pura, só valendo pelo interior, mas não pode ser, nem isso sou eu, vamos por seu brilho, mas sempre você se meter defendendo causas perdidas, lá irei com meu: "Carlos, não brilha, Carlos". Se agüente companheiro!
O SÁRA (Lara?) foi e voltou do Rio, mas não vi ele, vou ver hoje. Aliás, hoje é 27, que ontem a carta foi interrompida logo no começo com a chegada do médico e depois a infecção enfraquece muito, não pude continuar.
O f. da p. do Cassiano buliu comigo duma maneira de cachorro que ele é mesmo no discurso de recepção do Menotti na Academia. Deu a entender que em 1922 eu escrevi ao Menotti uma carta "particular" que si fosse mesmo "particular" seria bastante indecente como cabotinismo. Mas se trata de um artigo que publiquei, creio que chamado "Carta Aberta" a Menotti de (Piceclisa)(?) não tenho certeza, mas principiava assim, como o f. da p. citou: "Carta muito Particular". E principiava dizendo que tínhamos feito barulho da Semana de Arte Moderna só para ficarmos célebres; e estávamos célebres com efeito, porque os "araras" (sic) tinham caído no que queríamos. Coisa publicada para irritar e que irritava mesmo. Se alguém falar nisso engolindo a mentira do f. da p. explique e desminta. Eu, não vejo, não me meto com esse cão. Só em última instância, mesmo.
E creio que não tem mais.
Um grande abraço bem nosso para 1944 que espero vai ser bom. M.
Nota: As palavras em parênteses na maioria das vezes são porque não houve segurança na identificação das palavras
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