ACL - FUNDO DE ARQUIVO CARLOS LACERDA
 / Lacerda visto por jornalistas
Histórico
Conflituosa foi sempre a relação de Lacerda com os jornalistas não obstante a "Tribuna da Imprensa", órgão fundado e dirigido por largo tempo por ele, ter sido uma escola ou, pelo menos, a passarela de muitos jornalistas. Passaram por ela, por exemplo, Carlos Castelo Branco, João Duarte, Hélio Fernandes, Stefan Baciu, Hermano Alves, Murilo Mello Filho, Hilcar Leite e muitos outros. O conflito não decorreu apenas da veemência com que Lacerda abordava todos os assuntos e enfrentava todas as pessoas, mas por ter sido ele além de importante jornalista, o político mais controvertido e talvez mais influente de sua época. Esta página não foi organizada para salientar ou destacar as velhas querelas, mas para expor a opinião de jornalistas atuais e, por isto mesmo, distante das paixões que marcaram o relacionamento de Carlos Lacerda em sua época. Exceção para as reportagens publicadas no Estado de São Paulo logo após a sua morte e que antecipavam indulgências que não se confirmaram na prática.

A exceção fica para o trabalho de Carlos Lacerda que ficou inconcluso: A biografia de Júlio e Francisco Mesquita, cujo rascunho de prefácio vai transcrito na frente com o título “Prefácio da Vida dos Mesquitas - Uma Tentativa de Biografia”.

Luiz Gutemberg - Um enigma indecifrado - Perfil de Carlos Lacerda
Prefácio da vida dos Mesquitas - Uma tentativa de Biografia
Suplemento do "Jornal de Brasília" sobre o Fundo de Arquivo Carlos Lacerda
Edição o "Estado de São Paulo" de 27.05.77 sobre Carlos Lacerda (Flávio Galvão)
Octaciano Nogueira - No Jornal da Tarde de 2000
Editorial do Jornal do Brasil em maio de 1977. Atribuído ao jornalista Nilson de Figueiredo








Luiz Gutemberg - Um enigma indecifrado - Perfil de Carlos Lacerda

1 - Um enigma indecifrado
por Luiz Gutemberg

Lacerda é um dos enigmas chave da História contemporânea brasileira. Antes que o decifrem, personagens e episódios da vida brasileira - do Estado Novo a FHC - permanecerão no limbo, insatisfatoriamente conhecidos e explicados, soterrados pela avalanche dos preconceitos ideológicos, de paixões familiares, de ressentimentos pessoais e, principalmente, da desinformação clamorosa.

Nascido em 1914 (já herdando o peso da biografia do pai, Maurício de Lacerda, um tribuno e agitador político carioca, e enfrentando uma vida familiar confusa), Carlos Lacerda desde criança desenvolveu uma espécie de "síndrome do protagonista", que consistia numa estranha predestinação para tornar-se centro e propulsor de qualquer acontecimento em que se envolvesse. Desde as brincadeiras infantis na fazenda de café do ministro Sebastião Lacerda no interior do Estado do Rio, "a casa do meu avô", por ele evocada num livro de memórias, até iniciar-se, aos 21 anos, na agitação política, primeiro, como estudante de Direito que jamais se formaria, depois, jornalista e finalmente, líder popular que abalaria, mais de uma vez a República. Sempre como protagonista, no centro da cena, o que fazia convergir sobre ele, expondo tanto seu talento superlativo, sua imagem fascinante, sua coragem desmedida, como o outro lado, suas contingências humanas mais profundas.

A cena política não exibe apenas o orador e suas palavras; o estrategista e suas manobras; o administrador e suas obras, porque os refletores também iluminam e expõem suas falhas morais, suas fraquezas humanas, suas depressões (e não era por acaso que nenhum insulto o irritava mais do que chamá-lo de ciclotímico, maldade que seu alternado parceiro e adversário, Roberto Marinho, manejava competentemente para atingi-lo) e, principalmente, suas contradições, que se destacavam mais intensamente que as dos outros pelo fato de suas atitudes serem as mais escandalosamente observadas.

Onde quer que Lacerda tenha posto os pés - mais precisamente, as mãos e a voz, seus principais instrumentos de ação - nenhum outro personagem (nem o próprio Getúlio Vargas, em 1954, no supremo gesto do suicídio) obscureceu sua participação na cena. Pelo contrário.

Da mesma forma, em nenhum momento ele foi unanimidade e na única vez em que se submeteu a uma eleição majoritária - concorrendo para primeiro governador do Estado da Guanabara, em 1960, com o apoio de uma grande coligação partidária - elegeu-se com pouco mais de um terço dos votos, quase perdendo para um obscuro candidato esquerdista, Sérgio Magalhães, nome já totalmente esquecido no tempo.

O absurdo dessa eleição difícil amplia-se em função de dois outros episódios eleitorais, um antes, outro depois da apertada eleição para Governador. Dois anos antes (quando elegeu espetacularmente Afonso Arinos senador pelo Rio, ainda Distrito Federal, expondo o aristocrata mineiro na carroceria convencional do Caminhão do Povo, o ancestral paupérrimo dos palanques suntuosos em que se transformam os trios elétricos) e quatro anos depois, em 1964, quando o candidato a sua própria sucessão, Flexa Ribeiro, é derrotado por Negrão de Lima, por pequena vantagem e mostra o eleitorado carioca dividido meio a meio, entre lacerdistas e anti-lacerdistas, pois assim foi posta a disputa.

Onde quer que fosse instaurava-se a polêmica. Desde sua militância na esquerda, muito próxima do Partido Comunista ao qual nunca pertenceu formalmente, embora convertido ao marxismo pelos professores Leônidas de Rezende e Castro Rebelo, de quem era aluno na faculdade de direito e tendo atuado em organizações da chamada linha auxiliar do Partidão, como a Federação Vermelha dos Estudantes e, finalmente, na maior dessas iniciativas, a Aliança Nacional Libertadora. Foi na ANL que o estigma de comunista marcou Lacerda, pois foi ele, discursando no Teatro João Caetano, quem propôs o nome de Luiz Carlos Prestes para Presidente de Honra da ANL.

Na dura repressão que o Governo Vargas deflagrou contra a ANL, colocada na ilegalidade, o jovem Lacerda (aos 21 anos) era tanto o ativista de rua como o principal redator de revistas e jornais que se criavam, ostensivos ou clandestinos. Sua participação ia desde os editoriais mais agressivos aos textos literários, como um pequeno livro do escritor russo Ilya Ehrenburg, que não só traduziu, mas que apresentou com um ensaio articuladíssimo, ligando os fatos do livro à realidade brasileira.

Esse é um período de clandestinidade, lançamento do seu famoso pseudônimo Júlio Tavares (estranha coincidência: nesses dias, em Maceió, sem que se conhecessem, Graciliano escrevia o romance “Angústia” e dava o nome de "Julião Tavares" ao vilão do romance “Angústia”) prisão e casamento com a professorinha Letícia, com quem teria três filhos, Sérgio, Sebastião e Cristina. Também nesse tempo viveria uma lendária história de ruptura com seus amigos comunistas: por causa de um artigo escrito, sem assinatura, para a extinta revista Observador Econômico e Financeira sobre a história do comunismo brasileiro em que o editor, Olympio Guilherme, incluiu adjetivos e truncou frases, de tal forma que foi usado como propaganda anticomunista, reimpresso pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do Estado Novo. O problema é que, quando recebeu a encomenda do artigo, Lacerda recusou-a (embora precisasse de dinheiro, pois a mulher estava grávida do primeiro filho) e foi o próprio PCB que o incentivou a escrevê-lo, pois poderia usar a oportunidade para efeitos de propaganda. Como o resultado foi diferente, o PCB decidiu expulsá-lo, o que era um absurdo, pois Carlos não era seu filiado. Mesmo assim, sentiu-se expulso, entrou em depressão, tomou um porre e no delírio alcoólico que se seguiu chorou e declarou-se órfão, chamando o PCB de mãe.

Em conseqüência da "expulsão", seus amigos comunistas não só se afastaram como cumpriram as regras do PCB para o caso: passaram a caluniá-lo, insultá-lo, desprezá-lo. Só não conseguiram destruí-lo, pois Carlos Lacerda, com a mesma passionalidade, passou a devolver com "juros e multas", como se dizia na época, a campanha que lhe faziam seus ex-amigos comunistas. Pode-se dizer, hoje, que o PCB - pondo-se de lado a repressão policial e militar - não teve adversário mais duro e conseqüente nos 25 anos seguintes (entre 1939 e 1964) do que Carlos Lacerda. Aliás, Carlos Frederico Werneck de Lacerda (Carlos, por causa de Karl Marx, e Frederico, de Friederich Engels, já que seu pai, Maurício de Lacerda cumpriu itinerário muito parecido).

Tudo isso, porém, é apenas uma introdução ao Carlos Lacerda que a História contempla efetivamente e que surge em 1945, autor da entrevista de José Américo de Almeida no Correio da Manhã, que marcou o fim da censura do Estado Novo e antecipou a queda de Vargas. Elege-se, em 1947, vereador mais votado no antigo Distrito Federal, pela UDN, e renunciando espetacularmente quando a Constituição de 45 transfere ao Senado o exame dos vetos do Prefeito. Considerou seu mandato castrado e condenou a Câmara dos Vereadores ao papel ridículo e corrupto que lhe valeu o apelido de Gaiola de Ouro.

Funda em 1949 o jornal Tribuna de Imprensa em que, em 1954, desafiaria Vargas (que voltara eleito à Presidência da República) e pilotaria sua deposição, arrastando-o ao suicídio. Mas considera medíocre a substituição de Vargas pelo vice Café Filho e tenta uma aliança UDN-PSD, aritmeticamente imbatível se os votos das bancadas parlamentares de cada partido correspondessem aos votos dos seus candidatos a Presidente. Fracassa, apóia a contragosto Juarez Távora e, quando Juscelino vence, passa a conspirar contra sua posse, pretendendo um golpe que é vencido pelo contragolpe do General Lott, em novembro de 1955. Vai para o exílio e quando regressa ao Brasil, em 1957, quer mudar de perfil e assumir, de fato, a liderança política, ter o controle direto da UDN em que se atuava como eminência parda. Torna-se líder da Oposição na Câmara e vive batalhas memoráveis como a tentativa de cassação do seu mandato pelo general Lott, uma batalha de oratória contra o líder do PSD (o baiano Vieira de Melo) e com a qual cria as condições para eleger-se Governador da Guanabara em 1960. Realiza espantosa obra administrativa, pavimentando sua candidatura à Presidência da República, cortada quando os generais truncam os objetivos do golpe de 1964 e, orientados pelo jurista fascista Chico Campos, invertem o tradicional script dos golpes de Estados no Brasil e impõem uma ditadura de 20 anos.

Inconformado por lhe cortarem a carreira eleitoral, ele contra-ataca em 1968 com a organização da Frente Ampla, com seus arquiinimigos Juscelino e Jango Goulart, uma ousada arquitetura de aliança que ameaçava o regime militar muito mais que as revoltas estudantis e ações subversivas da esquerda. Para conter a Frente Ampla, os militares baixam o Al-5, o mais ignominioso texto legal já expedido no Brasil, cassam os seus direitos políticos e prendem-no. Lacerda, no seu mais espetacular gesto político, faz uma greve de fome e escreve, do cárcere, seu último e dramático libelo:

"Sempre disse aos militares: no dia em que vocês cometerem contra o Brasil o crime de levar, mais uma vez, este Brasil ao domínio de um grupo ambicioso, antidemocrático e, como vocês sabem muito bem, ainda por cima inepto e corrupto quanto os que mais o sejam, terão de me ouvir - ou me matar".

Os militares preferiam libertá-lo, mas não lhe permitem nunca mais escrever em jornais. Sua volta ao Jornal do Brasil, no início do Governo Geisel, é cortada violentamente por pressão de Golbery.

Carlos Lacerda morreu em maio de 1977, aos 63 anos, numa série de mortes misteriosas e altamente suspeitas, que num curto espaço de tempo, também levou Juscelino e Jango. Por acaso, os três signatários da Frente Ampla. Significativamente, meses depois Lacerda recobraria seus direitos políticos. Aos 63 anos, embora parecesse desinteressado da política, não se pode dizer que a tentação de voltar não o tivesse feito ressurgir e, quem sabe, no seu regresso não tivesse feito melhor papel que as melancólicas reaparições de Brizola e Arrais. Inclusive porque Lacerda era um mutante, ajustava-se, às realidades e aos seus novos sonhos e quando lhe cobravam coerência, respondia com um achado: "Mudo, sim. Só os loucos têm idéias fixas".

Um dia, dessa fantástica aventura biográfica de Carlos Lacerda um historiador sem preconceito vai revelar, com isenção e talvez paixão, um personagem chave para que se compreendam os homens que lideraram contemporaneamente o Brasil. Por ora, todos os traços de Lacerda constituem apenas um enigma. Quem foi efetivamente ele?

(Luiz Gutemberg JORNAL DE BRASÍLIA DE 08/09/99) 


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Prefácio da vida dos Mesquitas - Uma tentativa de Biografia

2 - Um prefácio de uma tentativa de biografia

Dois Ilustres Desconhecidos

Convém lembrar que não escrevo este livro para quem os conheceu e sim, para quem os desconheceu. Ainda mais, talvez, para os que os conheceram mal. Aos seus amigos, mais numerosos do que supunham, no seu orgulho quase todo feito de timidez, competirá um dia completar as informações que pude colher e proporcionar a oportunidade de escrever uma biografia completa. Este é muito mais uma tentativa de ensaio sobre sua vida. Mas, afinal, visa muito menos evocar as personagens do que as pessoas. Duas pessoas. Uma que se acende, outra que se apaga, deliberadamente, para que melhor se veja a luz que do outro que se irradia.

Apesar da admiração com que é escrito este livro, feito de tantos sentimentos positivos, espero não seja ele encarado como uma espécie de estátua em bronze e sim como algo vivo, capaz de transmitir até mesmo a sensação de inacabado, de incompleto, que este livro me dá antes mesmo de escrevê-lo. A biografia de Winston Spencer Churchill - nem por acaso uma das admirações dos meus dois personagens, foi escrita até o segundo volume, dos cinco planejados, por seu filho Randolph. Com a morte deste ocupou-se do terceiro volume o historiador. [Teve à sua disposição (etc.)]. Esse 3º dos cinco volumes ocupa-se apenas de dois anos da longa vida de Churchill: os anos cruciais de 1914 a .... No prefácio diz o Autor: ...........

Imagine agora este Autor, ............ para escrever sobre a vida, a vida inteira, por fora e por dentro, de dois homens que, pelas circunstâncias e nas condições que se há de ver, participaram e influíram sobre mais de meio século da vida brasileira. Leviandades da improvisação, compensadas, ao menos parcialmente, pela dedicação de alguns amigos, seus e nossos, de sua gente, de seus antigos colaboradores, muito especialmente de ........, e ........, e ainda, do ......., diretor do arquivo de "O Estado de S. Paulo". De minhas secretárias ..........., .............,............,........ sem as quais - como se costuma dizer, mas é rigorosamente exato, este livro não seria possível. E se se pode falar de inspiração diria que ele foi feito graças a dona Marina e a Luis Carlos Mesquita, a ela devo a maior atenuante com que poderia pleitear a minha absolvição dos erros e pecados. Quando certa vez alguém lhe falava mal de mim, ela ouviu com muita atenção e com a mesma deferência disse: "Pois é, mas você sabe, eu gosto até dos defeitos deles". E o Carlão, flor do gênero humano e com este cheio de defeitos, cada qual melhor.

A esses dois seres dedico este esforço. Ao leitor somente pelo que não me faça a injuria de encará-lo como um panegírico. Espero que o receba como uma contribuição ao conhecimento de uma época, de várias fases cruciais da vida brasileira, ou simplesmente da vida de dois brasileiros que ajudaram, em certos pontos decisivamente, a fazê-la como a sonhavam, a sonhá-la como a queriam fazer.

Ilustres, no sentido menos convencional da expressão, foram bem pouco conhecidos, na sua verdadeira natureza. Quem jamais conhecerá a fundo a face oculta dos seres, suas motivações, seus impulsos sufocados, tudo o que não exteriorizam e o que, visto de fora, contrasta com o que nuca se verá? Todo ser é secreto e, como os icebergs, parecem flutuar, mas levam sobre a água apenas uma parte bem menor do que aquela que passa, invisível, na sombra densa das águas.

Por isto, a rigor, toda biografia é uma interpretação, uma tentativa.

(Rascunho original de autoria de Carlos Lacerda nos Arquivos da Fundação 18 de Março)


2.1 - CARTA-CIRCULAR de Carlos Lacerda AOS MESQUITA

"Rio de Janeiro, 29 de Dezembro de 1975
Meus queridos amigos,
Fechou-se o ano e não abrimos o livro sobre os dois Mesquita, Julinho e Chiquinho. A esta hora vocês estão arrependidos de me terem conferido a honra desse encargo. E não adiantam justificações. Tempo, viagens, preocupações diversas, solicitações do todo dia, dificuldade no levantamento das informações, coordenação destas, e principalmente a estupenda tarefa de contar a história do Brasil, notadamente a de São Paulo, de mais de meio século para tornar inteligível o significado da vida e do esforço desses dois homens.

O material que era possível obter nesse período de tempo, com as limitações que vocês podem imaginar - esses dois homens de ação deixaram na realidade muito pouca documentação, afora o manancial que é o arquivo do "Estado" - está reunido e classificado segundo os capítulos de plano geral da obra. Concebida em dois volumes, um de fácil e corrente leitura, outro com as referências e documentação, de modo a atender aos dois aspectos, a obra está pronta para ser escrita. Não seria possível sem os colaboradores que tive, dos quais ainda terei de lançar mão no decorrer do trabalho.

Mas, escrever uma obra assim, com a entendo, não é problema só de documentação. É de um conjunto de circunstâncias, uma das quais - apenas uma - é a continuidade do tempo dedicado a escrevê-la. Essa continuidade é que me faltou. Interrompido sempre por tantas outras solicitações e urgências, viagens, trabalhos, responsabilidades, deveres, fui obrigado a concentrar em Petrópolis o material, que lá está, em caixas de papelão, todo arrumado pelo Luis Ernesto, à espera do dia em que possa me concentrar ali, como um jogador em véspera de campeonato, e sem interrupções, desligado de outras obrigações, cumprir a missão que vocês me deram e que eu, orgulhosamente, assumi.

Acredito que isto possa ser feito a partir das férias de carnaval. Creio garantido que isto aconteça, pois para isto estou tomando as providências indispensáveis. Creio que com um mês de trabalho praticamente, em vagares, de aperfeiçoamento, terei que dar retoques finais - estes, bem mais fáceis.

Portanto, seria um trabalho a terminar em fins de março. Mas, quero deixá-los inteiramente à vontade. Ou antes, não. Seria hipócrita dizer que se tiverem alguém que possa fazer já, etc., etc. Quero escrever esse livro. Estou ligado a ele por muitas razões, a maior das quais é a sentimental, mas não a única. Pois estou convencido de que com este livro muitas confusões da história contemporânea do Brasil serão deslindadas. Neste ponto encontro uma das maiores atrações desse trabalho. Ainda há dias obtive um documento essencial. Que me faltava. Minha carta ao presidente Castelo Branco, pleiteada, obtida e levada pelo Dr. Julio. Era um documento essencial. Obtive-o do John F. Dulles, por incrível que pareça. Eis um exemplo das dificuldades.

Em suma, acabei escrevendo uma carta longa para dizer bem pouca coisa. Tudo se resume no seguinte: desculpe o atraso; em abril, sem falta, entrego o texto à editora. E desejo a todos vocês o ano melhor possível. Com um abraço de constante e fiel saudade.

Carlos Lacerda


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Suplemento do "Jornal de Brasília" sobre o Fundo de Arquivo Carlos Lacerda


Carlos Lacerda e os Jornalistas
3 - Vários jornalistas colaboraram no Suplemento do Jornal de Brasília dedicado ao Arquivo Carlos Lacerda em 08.09.99

3.1 - Arquivo (quase) confidencial
Por Joscana Paganini 

Repórter do Jornal de Brasília 

Às vésperas de se comemorar os 500 anos de Descobrimento, o Brasil é um país que ainda trata mal a sua história. Reconstruir os fatos e a trajetória dos homens que deixaram sua marca, benéfica ou maléfica, nos rumos da nação continua sendo uma tarefa inglória. Tanto descaso com o passado já valeu ao país a alcunha de "desmemoriado". Assim, além de festejar, o Brasil precisa aproveitar a data para se descobrir. 

Na era das altas tecnologias de informação, aquela visão romântica do historiador que, em atitude quase detetivesca, se trancafia em um porão para revirar ansioso documentos empoeirados não está assim tão distante da realidade. E não é preciso ir muito longe nem voltar a épocas remotas para constatar isso. Até bem pouco tempo atrás, quem quisesse consultar o arquivo Carlos Lacerda, um dos mais famosos e polêmicos políticos brasileiros, na Biblioteca Central da Universidade de Brasília iria reproduzir uma cena exatamente igual à descrita. 

Felizmente, este ano a sorte do arquivo começou a mudar. Todo acervo de Lacerda, 180 mil folhas de documentos textuais, que formam cerca de 30 metros lineares, além de farto material iconográfico, está sendo organizado agora pela UnB. "Nosso desafio é transformar isso tudo em um conjunto inteligível", afirma o professor de Arquivologia da UnB, Renato Tarcísio de Souza, responsável pela organização do material. Com ele, trabalham mais quatro alunos da Universidade, dois de Arquivologia e dois de História. 

A iniciativa só foi possível graças ao apoio da Fundação 18 de Março (Fundamar), uma entidade privada com sede em Belo Horizonte, que atua na área cultural. Entre as atividades da Fundamar está a manutenção de uma escola-fazenda, no sul de Minas Gerais, para filhos de trabalhadores rurais da região. 

O arquivo Carlos Lacerda foi parar na Universidade em 1979, quando o então reitor José Carlos Azevedo o comprou da família do ex-governador do estado da Guanabara. Lacerda havia falecido há dois anos e a família resolveu se desfazer do material. Mas, por 20 anos, cartas, documentos, discursos, matérias de jornal, poemas e fotografias permaneceram amontoados em uma sala da Universidade, sem qualquer tipo de organização. Consultar o material - e alguns se aventuraram a consultá-lo, como o brasilianista norte-americano, John Foster Dulles, autor da principal biografia sobre o político e jornalista, “Carlos Lacerda, a trajetória de um lutador” - era um verdadeiro ato de heroísmo. 

Mas isto não é o pior. O que mais assustava àqueles que procuravam o arquivo era a situação de risco em que ele se encontrava. Poeira e fungos ameaçavam a longevidade do material. Sem nenhuma fiscalização ou controle, quem conseguisse achar algo interessante em meio à desorganização poderia, tranqüilamente, levar o documento para casa. 

Para resolver o problema, foi preciso primeiramente compreender a totalidade do arquivo. Pelo arquivo, podemos depreender que Lacerda era um homem de extraordinária energia. Ela fazia de tudo ao mesmo tempo e ainda arranjava disposição para escrever uma carta de cinco páginas comentando uma reunião do condomínio", comenta Renato de Souza. 

Assim, o professor montou um quadro de classificação dos documentos de acordo com as atividades desenvolvidas por Lacerda. Vida pessoal, Produção intelectual, Empresário, Vida política são os itens sob os quais estão sendo reunidos os documentos. Os três primeiros já estão praticamente prontos. A equipe adentra agora na parte mais rica do arquivo, ou seja, o material referente à carreira política de Lacerda. 

Em Vida pessoal, o pesquisador encontrará desde a certidão de nascimento de Lacerda, passando pela correspondência pessoal, até nota fiscal de padaria. "O arquivo nos mostra que Lacerda era uma pessoa muito metódica. Ele guardava quase tudo. Há cardápio de restaurante, cartões postais de lugares que visitou, bilhete de ópera, atestado médico. Só estamos eliminando os documentos em duplicata”, conta Souza. Há também correspondências entre Lacerda e escritores como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Gilberto Freyre, Érico Veríssimo, John Dos Passos, entre outros. 

Tanta correspondência com escritores se deve ao fato de Lacerda ter também pretensões literárias. Em Produção intelectual, está reunida a sua vasta produção, que inclui poemas, peças de teatro feitas para rádio na década de 40 e 17 traduções. O mais alto vôo de Lacerda na arte de traduzir foi a peça Júlio César, de Shakespeare. No entanto, o tradutor recebeu críticas ferrenhas. "Temos críticas sobre a tradução de Júlio César, nas quais diziam que Lacerda não entendia nada de Shakespeare, muito menos da língua inglesa. Temos a impressão de que a virulência de Lacerda fazia com que as pessoas também afiassem a língua contra ele", analisa o professor. Pois a famosa oratória de Lacerda expressa nos discursos e no jornalismo, capaz de desestabilizar governos e fazer inimigos figadais, também está inclusa em Produção intelectual. 

A faceta de empresário de Lacerda também se destaca e chama a atenção pela variedade. Dono do Grupo Novo Rio, o ex-governador estava à frente de financeira, imobiliária, lojas de peças de veículos, canil, casa de câmbio, editora de livros, o jornal Tribuna da Imprensa. Foi Lacerda quem fundou as editoras Nova Fronteira e Nova Aguilar. "Sua vida empresarial é a menos conhecida. Lacerda desempenhava também o papel de consultor econômico. Temos bilhetes de pessoas que escreviam para ele pedindo conselhos de onde aplicar o dinheiro. Foi ele também o primeiro a tentar trazer para o Brasil uma franquia do McDonald's".

O professor Renato e sua equipe estão agora fazendo o reconhecimento do material referente à vida política de Lacerda. Há documentos sobre sua atuação como vereador, deputado federal, governador e principal dirigente da União Democrática Nacional, a UDN. Mas já deu para constatar que o material é vasto e riquíssimo. "Quase todas as manobras políticas eram feitas por carta. Neste sentido, a política da época era mais bem documentada do que a atual, que se utiliza basicamente do telefone e do computador", avalia Souza. O professor ressalta que muitos dos documentos sobre o período em que Lacerda foi governador da Guanabara são, na verdade, documentos públicos, ou seja, que pertenciam não ao homem mas ao governo que ele administrou. "Isto reforça a imagem de que no Brasil se confunde o público com o privado, principalmente no meio político. Nos documentos de Lacerda há projetos, atas de reunião, relatórios, ofícios governamentais". 

O professor destaca ainda os documentos referentes à Frente Ampla, criada por Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda após o golpe militar. Em um primeiro momento, Lacerda apoiou a derrubada de Jango na esperança de ser candidato a presidente em 1965. Vendo que os militares não deixariam tão cedo o poder, os três até então inimigos se uniram para resistir à ditadura militar. A Frente vigorou de 1966 até a cassação de Lacerda, em 1968. No arquivo, há cartas trocadas entre os três expoentes da Frente e entre outros nomes da resistência como Miguel Arraes. Os eleitores de Lacerda também escreviam protestando contra o apoio que o político deu ao golpe militar. 

Se os documentos estão sendo organizados, a biblioteca particular de Lacerda vai continuar dispersa no acervo geral da Biblioteca da UnB. Segundo o professor Renato de Souza, é impossível identificar onde estão todos os volumes que pertenceram a Lacerda em meio aos aproximadamente 600 mil livros do acervo. "Temos apenas uma idéia do que era a biblioteca de Lacerda. Ela era tão eclética quanto ele. Tinha todos os tipos de publicação", explica. 

Joscana Paganini 
Repórter do Jornal de Brasília

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Edição o "Estado de São Paulo" de 27.05.77 sobre Carlos Lacerda (Flávio Galvão)

Filho de Maurício de Lacerda e de Olga Werneck, Carlos Frederico Werneck de Lacerda, que como jornalista e político se assinava apenas Carlos Lacerda, embora registrado no município fluminense de vassouras, de onde sua família era natural, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, bairro das Laranjeiras, a 30 de abril de 1914.

Já aprendera as primeiras letras com uma empregada da família quando foi freqüentar o curso primário na Escola Pública José de Alencar, no Largo do Machado. Fez o curso ginasial no Liceu Francês, de onde se transferiu para o Internato Pio-Americano. Conta-se que desse estabelecimento fugiu, vindo, tempos depois, a concluir o secundário num colégio localizado no centro da antiga capital federal. Depois de ter feito o pré-jurídico no curso anexo da Faculdade de Direito nesta ingressou, mas em 1937, quando estava no segundo ano, abandonou os estudos. No ano seguinte, casou-se com D. Letícia Abruzzini. Desse casamento teve três filhos, dois rapazes, Sérgio e Sebastião, e uma moça, Maria Cristina.

Inteligência brilhante, desde muito moço teve seu interesse despertado pela política, colocada em termos dos interesses maiores da nacionalidade e do bem-estar comum. Esse despertar precoce para os problemas da Pátria resultou certamente de seu ambiente familiar. Seu avô, Sebastião Lacerda, fora deputado federal, secretário do Interior e Justiça do Estado, ministro da Viação, Indústria e Obras Públicas, secretário geral do Estado do Rio e terminara sua carreira como ministro do Supremo Tribunal Federal. Em nossa mais alta corte de justiça destacou-se pela sua coragem e independência, jamais se acovardando ante as pressões políticas nem se curvando aos poderosos do dia. Quem se der ao trabalho de estudar a atuação do Supremo no começo da década de 20, até se aposentar, enojado - como bem narra seu filho Maurício Lacerda no livro "História de uma Covardia", cuja reedição está sendo anunciada pela editora de Carlos Lacerda -, verá que Sebastião Lacerda foi um juiz com jota maiúsculo. 

Seu pai, Maurício de Lacerda, também político militante, que exerceu diversos cargos públicos e mandatos eletivos, é considerado um dos maiores tribunos brasileiros. Homem com preocupações de ordem social, participou dos movimentos revolucionários da década de 20, tendo sido preso diversas vezes. De seu prestígio diz bem o fato de, em fins daquela década, ter sido eleito à Câmara Municipal do Rio quando estava encarcerado, por motivos de perseguição política. Maurício de Lacerda foi um dos primeiros líderes Políticos brasileiros a defender os direitos civis das mulheres, o direito de greve e outras reivindicações dos trabalhadores. 

De se mencionar, para que se possa avaliar em que ambiente se formou Carlos Lacerda, que dois tios paternos formaram no Partido Comunista do Brasil, nos Primeiros anos da agremiação, fundada no Rio em 1922, participação que valeu aos parentes perseguições de toda a sorte. 

Assim, de seu avô e de seu pai, Carlos Lacerda herdou a inteligência, a coragem, a independência, a combatividade, a facilidade de palavra, escrita e falada, e o interesse pela política concebida em termos superiores. Com tais qualidades foi ainda mais longe que seus ascendentes, assegurando-se um lugar na história do Brasil, história que ele ajudou a fazer em determinados períodos. 

Vocacionado pela política, suas primeiras experiências foram praticamente adquiridas quando freqüentava o curso de Direito, tendo pertencido ao Movimento da Reforma. Naquele tempo, aos jovens pensantes e inconformistas, preocupados com os rumos do seu país, ofereciam-se duas grandes opções: o comunismo e o fascismo. Eram raros os que preferiam, como terceiro caminho, a democracia, pelo menos nos mesmos termos idealísticos que seus pais haviam professado. Vivia o mundo, nessa época, a maré montante dos totalitarismos de direita.

As preocupações sociais de seu pai, abertamente um homem de esquerda, a opção dos tios paternos, devem - é licito inferir - ter influenciado Carlos Lacerda na sua mocidade, levando-o a uma atitude de simpatia em relação à teoria marxista. Colaborou ele mesmo com alguns militantes do PC, enquanto aguardava seu ingresso nas fileiras partidárias, mas isto jamais se concretizou. Ao contrário, o que ocorreu, a partir de determinado momento de sua vida, foi o completo rompimento com os comunistas, vindo ele a ser, na fase mais importante, de sua atuação política, marcadamente democrática, duro adversário do comunismo e dos comunistas, por isso mesmo alvo de permanente e orquestrada campanha injuriosa, caluniosa e difamatória dos vermelhos e seus parceiros diversos, entre estes os corruptos de todos os tempos. 

Em meados da década de 30, Carlos Lacerda ligou-se à Aliança Nacional Libertadora, que pode ser considerada uma versão brasileira, de "frente popular", que era o tipo de organização auspiciada pelo comunismo internacional para atuação em todo o mundo. A ANL foi lançada em 30 de março de 1935, em um comício realizado no Teatro João Caetano. Seu presidente de honra é Luiz Carlos Prestes, e o manifesto lido no ato o foi pelo estudante Carlos Lacerda. 

Carlos Lacerda tomava, destarte, pública posição contra o totalitarismo de direita, no Brasil representado pelos integralistas. Em Vassouras, seu pai, então prefeito da cidade, no mês de maio chegou a ameaçar de dissolver a bala um comício dos "camisas verdes". 

Embora nem todos os seus dirigentes e militantes fossem comunistas, a ANL acabou sendo fechada, pelo decreto 229, expedido em 11 de julho de 1935, quando já no País vigorava a Lei de Segurança que Vargas obtivera do Congresso. 

Ocorrendo a intentona vermelha de novembro de 1935, Carlos Lacerda, que nela não teve qualquer participação, foi obrigado, no entanto a ocultar-se durante muitos meses, em casa de amigos e parentes, para escapar à sanha da repressão. Dedicou, então, a maior parte de seu tempo à leitura, dando vazão a outra vertente de sua personalidade.

Se se interessava pela política, se se preocupava com os rumos da nacionalidade, Carlos Lacerda não se sentia atraído, então, por paradoxal que possa parecer, pela militância partidária. O que se poderá explicar, possivelmente, pelo quadro que o Brasil oferecia nesse setor, dominado pelas politicalhas, pelos cambalachos, pelas intrigas, pela luta do poder pelo poder, apenas, sem nenhuma outra preocupação superior. 

A forma de atuação que encontrou para participar do processo nacional foi o jornalismo, campo em que atingiu a culminância, podendo ser considerado, sem favor, um dos gigantes da imprensa brasileira de todos os tempos.

Ainda adolescente, com 15 anos, iniciou-se ele no jornalismo, ingressando em 1929, no "Diário de Notícias" do Rio. De 1936 a 1938 trabalhou na "Revista Acadêmica", no semanário "Diretrizes", do qual saiu em princípio da segunda Guerra Mundial por discordar da sua linha política, no "Observador Econômico e Financeiro". 

Depois de ter criado o "Boletim da Associação Comercial", entrou para os "Diários Associados", a empresa de Assis Chateaubriand, tendo dirigido a Agência Meridional e exercido o cargo de secretário de redação de "O Jornal" - órgão-chefe daquela cadeia - e que abandonou por se ter recusado a desmentir os termos de uma entrevista que lhe fora concedida por um ministro do Estado Novo. 

Já então estava o Brasil sob o regime da férrea censura imposta pelo Estado Novo, que se valia do DIP- Departamento de Imprensa e Propaganda -, da polícia política e do Tribunal de Segurança Nacional para manter amordaçados os jornais e, pois, a opinião pública nacional.

Carlos Lacerda, que combatia vigorosamente a ditadura de Vargas, foi depois redator do "Diário Carioca" e, em 1945, ingressou no "Correio da Manhã", o corajoso jornal fundado por Edmundo Bitencourt.
O totalitarismo de direita então estertorava, em todo o mundo. Os exércitos das potências democráticas - às quais se juntara a União Soviética somente depois de atacada pelo antigo aliado nazista - triunfavam em todas as frentes. E, na Itália, lutava uma Força Expedicionária Brasileira, em prol da causa da liberdade.
A medida que progrediam as vitórias democráticas nas frentes de guerra, no Brasil crescia a resistência democrática interna e enfraqueciam-se os mecanismos de repressão ditatorial. Em fevereiro de 1945 inicia-se, abertamente, o processo de derrubada do Estado Novo. E o marco inicial desse processo é uma entrevista de José Américo de Almeida, publicada pelo "Correio da Manhã" na edição do dia 22 daquele mês. Foi ela concedida, às instâncias de Luís Camilo de Oliveira Neto, ao jornalista Carlos Lacerda que, assim, inscrevia mais uma vez seu nome na história política do País. Essa entrevista derrocou as muralhas da censura do DIP. 

Reconstitucionalizado o Pais, Carlos Lacerda em 1946 candidatou-se a vereador à Câmara do então Distrito Federal, obtendo a maior votação até aí registrada. Tendo preparado um modelar plano de assistência hospitalar, pouco tempo depois renunciou a seu mandato, em sinal de protesto contra a decisão do Congresso de restringir os poderes legislativos da Câmara dos Vereadores.
 
Principalmente a partir dessa época é que ele passa a representar, pela sua ação direta e pessoal, um dos mais fortes baluartes em defesa da democracia e da dignidade nacional. Já então se desiludira, de há muito, com o comunismo e se convertera em católico praticante. Passara a combater o comunismo, sob todas suas formas e disfarces, o que lhe valeu ser o político mais temido e mais odiado pelos vermelhos e afins. 

Em 1949, fundou um jornal no Rio, dando-lhe por nome "Tribuna da Imprensa"; sua coluna no "Correio da Manhã" chamava-se exatamente "Da tribuna da imprensa". Da "Tribuna da Imprensa" fez ele um órgão voltado para os interesses superiores do País, desenvolvendo memoráveis campanhas contra a politicagem, contra a corrupção político-administrativa, denunciando negociatas, fraudes, imoralidades, e contra a subversão. Não se circunscreviam suas campanhas ao campo político, mas desciam ao social, obtendo grande repercussão, por exemplo, as que fez em favor da assistência aos nordestinos e contra a exploração do lenocínio pela própria polícia. 

Jornalista-cruzado, conheceu a sorte a estes reservada, suas denúncias e campanhas valendo-lhe agressões, injúrias, calúnias, difamações, processos criminais. Nada, porém, tinha força suficiente para silenciá-lo. Para desespero de corruptos e subversivos de todos os naipes, sua voz não se calava.
Reconduzido Vargas, pelas urnas, à presidência da República, no pleito de 1950 e assumindo o poder em 1951, Carlos Lacerda assesta contra seu governo todas as suas baterias. Vai iniciar-se então um período em que sua atuação é decisiva no quadro Político nacional. 

Suas denúncias da corrupção infrene ou, para usar da expressão que passou à história, "mar de lama" em que se atolava o País. Em agosto de 1951, a "Tribuna da Imprensa" inicia a série de grandes reportagens contra os escândalos do governo de Vargas. É o caso das "peruas" Dodge, que se importavam via Rio Grande do Sul, negócio em que tinha interesse o famoso "tenente" Gregório Fortunato, capanga e chefe da guarda pessoal de Vargas. 

São desse ano de 1951 o caso do Banco do Brasil, objeto de um inquérito. O presidente do Banco é Ricardo Jafet e o inquérito objeto de discurso de José Bonifácio na Câmara Federal. Logo mais, uma comissão parlamentar de inquérito denuncia o envolvimento de João Goulart e do Instituto Riograndense do Arroz - IRGA num caso de compra de feijão. 

O mês de dezembro de 1951 se inicia com a prisão do jornalista Carlos Lacerda, que de testemunha passa a réu de crime de injúria e calúnia contra o poder público. Sua prisão provoca reação pública em nível nacional e em seu favor se impetra "habeas-corpus". 

Em janeiro de 1952, eclode o escândalo do algodão, objeto de discurso de Afonso Arinos na Câmara Federal. 

A sucessão dos escândalos começa a abalar o País e a provocar reações. A 22 de março de 1953, os paulistanos, em inequívoca reação contra o estado de coisas, elegem Jânio Quadros prefeito de São Paulo. Indo ao Rio, o prefeito paulistano declara em 21 de abril que a Nação mergulha na imoralidade e que a crise era de caráter. E no dia 23, pela primeira vez, avistam-se Jânio e Carlos Lacerda, que o entrevista. 

Carlos Lacerda inicia logo outra campanha: contra a imprensa mercenária, contra a imprensa que era favorecida pelo governo. O principal alvo é o jornal "Ultima Hora", fundado com favores oficiais em junho de 1951 Por Samuel Wainer, jornalista que cobrira a campanha presidencial de Vargas, a quem então se ligara estreitamente. A campanha atinge pessoalmente o próprio Wainer, cuja cidadania brasileira é posta em xeque, caso que se resolve na justiça, mas por prescrição, isto é, sem que haja decisão sobre o mérito do que se argüira. Mas, Aliomar Baleeiro, hoje ministro aposentado do STF, chegou a pedir ao ministro da Justiça a expulsão de Wainer do País. 

A campanha de Carlos Lacerda leva à criação de uma CPI para examinar as transações entre o Banco do Brasil e as empresas "Erika" e "Ultima Hora". Desde então, Carlos Lacerda passa a ser o inimigo Público nº. 1 do jornal de Wainer. A investigação comprova as denúncias. 

Em julho de 1953, outro escândalo: na Câmara, Alencastro Guimarães denuncia a importação fraudulenta de automóveis "Rolls Royce". 

Em dezembro de 1953, Raimundo Padilha denuncia irregularidades graves da CEXIM. 

Em março de 1954, a "Tribuna da Imprensa" acusa o general Mendes de Morais de traficante de dólares no câmbio negro. No fim desse mês, Carlos Lacerda é agredido por Euclides Aranha; filho do ministro Oswaldo Aranha, da "entourage" de Vargas, e pelo coronel Clóvis Costa, subchefe do Gabinete Civil do governo. Pelo seu jornal, Lacerda retrata o ministro em artigo intitulado "Retrato de um corifeu da oligarquia". 

Em abril, demite-se do Ministério de Relações Exteriores o gaúcho João Neves, que acusa Vargas de ter negociado secretamente com Perón a assinatura de um pacto econômico contra os Estados Unidos. 
Em maio, o filho de Vargas, Lutero, move processo contra Lacerda, pretendendo que este seja submetido a exame de sanidade mental. Responde o jornalista pela "Tribuna da Imprensa": "Ele deve achar louco quem não se corrompeu". 

Em julho, chega ao fim o caso da "Erika" - "Ultima Hora". Apesar de comprovadas as denúncias, os principais envolvidos no escândalo são absolvidos, o que leva o relator da CPI, deputado Frota Moreira, eleito pelo PTB paulista, a, sob os olhares atônitos da Câmara, rasgar o Processo dizendo: "Rasgar o inquérito é a única satisfação que tenho para comigo mesmo. 

É nesse ambiente que se chega ao mês de agosto de 1954. No dia 5, "gangsters" e Membros da guarda pessoal de Vargas tentam assassinar Carlos Lacerda, que fica ferido. No atentado morre o major-aviador Rubens Vaz. O atentado passa à história como "O Crime da rua dos Toneleiros".

O crime emociona todo o Pais e provoca onda geral de indignação. As investigações são assumidas pela própria Força Aérea Brasileira. Por se temer que, - se conduzidas Pelos canais competentes, dariam em nada, calculando-se desde logo que havia comprometimento, direto ou indireto, do governo. instaura-se então o que se chamou de a "República do Galeão", porque naquela base da FAB estabelece-se o quartel-general das investigações. 

Logo se identificam os criminosos. Foram estes pagos pelo chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, ao que, presos beneficiários do regime. Mandante e executantes foram presos, processados e condenados a severas penas. Muitos anos depois Gregório morreu assassinado na cadeia e seu nome, na FAB, passou a ser usado como sinônimo de "traidor", "pelego", "sem caráter". Se outros mandantes existiram além do chefe da guarda pessoal de Vargas, jamais se apurou concretamente. 

A descoberta do "mar de lama" que se escondia sob o Palácio do Catete põe em xeque a autoridade de Vargas, que não poderia mais continuar na presidência. Obstina-se ele em não licenciar-se e, muito menos, em renunciar, até a madrugada de 24 de agosto em que, afinal, vendo a situação perdida, suicida-se, preferindo a morte a uma segunda deposição em circunstâncias vexatórias. 

Em 1954, Carlos Lacerda candidatou-se a deputado federal, Pela legenda da UDN, e apesar da caluniosa e difamatória campanha que lhe moveram os getulistas e comunistas, conseguiu repetir a proeza de 1946: foi o deputado mais votado. Em 1958 reelegeu-se, novamente como o mais votado, prova evidente de seu prestígio Político e pessoal. 

Desde o início, revelou-se Lacerda parlamentar ativo. Líder da bancada da União Democrática Nacional e líder da Oposição na Câmara Federal, sua intervenção nos debates caracterizava-se pelo violento tom polêmico, atacando o governo, apontando-lhe os erros, que, no seu entender fatalmente conduziriam à destruição das instituições democráticas no País.

(DO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO DE 27.05.88)


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Octaciano Nogueira - No Jornal da Tarde de 2000

5 - Professor Octaciano Nogueira

Publicado no Caderno de Sábado do Jornal da Tarde - Sábado, 27 de maio de 2000
"Lacerda, a esfinge que devorou a si mesma"

O ex-deputado e ex-governador do Rio foi o único ‘se’ da história política contemporânea brasileira. Se não tivesse existido, é possível que Getúlio não tivesse se suicidado, Jânio não tivesse renunciado e Jango não tivesse sido deposto

Tratando-se de Carlos Lacerda, tudo era possível, menos a isenção.

Até mesmo para um estrangeiro como John W. Foster Dulles, que acaba de completar, oito anos depois da publicação do primeiro volume, a monumental biografia do mais corrosivo dos políticos brasileiros. Ainda que precavido, o historiador, capaz de enfrentar temas tão áridos e controvertidos quanto o movimento anarquista e comunista no Brasil, ou a biografia de Castelo Branco, cede à sedução de Lacerda quando, no último capítulo, comete o pecado venial de tentar imaginar o que teria sido uma eventual presidência daquele que fez desse sonho a razão de viver.

O "se", ensinou Arnold Toynbee, o maior historiador deste século, é irrelevante para a história. A única exceção, para ele, era "se" os persas tivessem vencido a batalha das Termópilas, hipótese em que não haveria o que hoje chamamos de "civilização ocidental". Pois Carlos Lacerda foi o único "se" da história política contemporânea brasileira. Se não tivesse existido, é possível que Getúlio não tivesse se suicidado, Jânio não tivesse renunciado e Jango não tivesse sido deposto.

Sua exaustiva e bem documentada biografia (Carlos Lacerda: a Vida de um Lutador, 2 volumes, Nova Fronteira; vol. 1, 516 págs., R$ 40,00, e vol. 2, 792 págs., R$ 49,00, ou R$ 80,00 a edição acompanhada de uma fita cassete com discursos do ex-governador), entretanto, não pode ser lida sem o seu último testemunho, o livro Depoimento. Resultado de 34 horas de entrevistas dadas entre abril e maio de 1977, a uma equipe do Jornal da Tarde, pouco antes de sua morte, o texto serve ao mesmo tempo tanto de intróito quanto de post scriptum à obra de John Foster Dulles. No prefácio de seu amigo Ruy Mesquita, diretor-reponsável de O Estado de S. Paulo, que o convenceu a falar, quando ainda cassado, pode-se intuir facilmente por que era o único "se" em nossa história política.

No episódio por ele relatado e passado na fazenda do Dr. Júlio de Mesquita Filho, Lacerda disse ao então diretor do Estadão: "Eu tenho o direito de terminar minha vida política na Presidência da República, Dr. Júlio, e, se os militares assumirem o poder, desta vez permanecerão nele o tempo suficiente para que isso não seja possível." Lacerda, porém, como se pode notar em sua biografia, não era bom profeta. Tanto que acreditou, mesmo depois do golpe, que ainda poderia chegar à Presidência e que nunca seria cassado.

Mas quem poderia condená-lo se o próprio Juscelino foi capaz de supor que, apoiando Castelo e ajudando a elegê-lo, seria poupado da cassação que também o vitimou antes ainda de Lacerda? Inimigos em quase toda a vida, reconciliados no fim dela, eles partilharam o mesmo destino. Com os direitos políticos suspensos e afastados da vida pública, JK e Lacerda morreram sem ver a democracia restaurada no país.

Carlos Lacerda não era só um homem impulsivo e inquieto. Tinha como qualidades aquelas que hoje mais fazem falta à vida pública do país: talento, cultura, idéias, vocação, desprendimento, honestidade e inesgotável capacidade de trabalho. Contudo, tinha também os defeitos que o vitimaram: arrogância, intolerância, inflexibilidade e obstinação sem limites. Era capaz de grandes gestos, de que está recheada sua biografia. Mas também de irreparáveis injustiças, que, ao longo de sua carreira, terminaram por não poupar nem mesmo os amigos pelos quais, em algum momento, revelou apreço.
Em 40 anos de vida pública, foi vereador, deputado e governador, mandatos que exerceu de forma apaixonada e com brilho de que poucos seriam capazes.

Como o pai, foi um dos mais prolíficos oradores e o maior tribuno que a República conheceu. Enquanto teve à sua disposição o rádio e a televisão, que engatinhava no Brasil, foi capaz de prodígios hoje inimagináveis. Não só arrastava consigo uma multidão de inflexíveis seguidores, capazes de todo sacrifício para aplaudi-lo, como também despertava ódios e inconformismos irreprimíveis por parte de seus adversários, sempre prontos a agravá-lo e a insultá-lo, exatamente como ele costumava fazer para desqualificar os que elegia como inimigos. Siderado pela política, semeou paixões e espalhou hostilidades por onde passou. A esquerda o abominava, a direita o temia.

Depois de um enorme sucesso como governador, enquanto se preparava para disputar a Presidência, despertou esperanças de redenção num dos mais conturbados períodos da política brasileira. Agravou e foi agravado.

Insultou e foi insultado. Agrediu e foi agredido, em seu caso não só verbal, mas também fisicamente. Marcou toda uma época e protagonizou, graças a uma combatividade capaz de levá-lo ao paroxismo, algumas das mais destrutivas campanhas. Getúlio e Jânio tornaram-se suas maiores vítimas.

Nem por ser verdugo, porém, deixou de ser também vitimado. Escaldado com o exemplo e o precedente de Vargas, Juscelino, mesmo tolerante como era, proibiu seu acesso ao rádio e à televisão, durante todo o seu mandato, tarefa de que se encarregou o general Olímpio Mourão Filho, então presidente da Comissão Técnica de Rádio. Talvez por isso, dizia-se à época, logrou terminar seu governo. Isto não evitou cometer o seu maior erro, o de tentar cassar o mandato de Lacerda, permitindo-lhe produzir um dos mais engrandecedores momentos do parlamento brasileiro.

A defesa de Lacerda, produzida pelo próprio político na Comissão de Constituição e Justiça, é uma peça antológica e pode ser ouvida na primeira edição da série de cinco CDs "Os grandes momentos do Parlamento brasileiro", editada pelo Senado, com a gravação de alguns dos mais importantes discursos já proferidos no Congresso, selecionados pelo jornalista Rubem de Azevedo Lima.

Para chegar aos píncaros da glória como político, de onde a adversidade o arrebatou para a queda inevitável, Carlos Lacerda alicerçou sua fama como um dos mais brilhantes jornalistas de sua época. Concomitantemente com o segundo volume de sua biografia, a Editora Nova Fronteira, que ele criou e é comandada hoje por seus herdeiros, acaba de lançar a coleção de suas crônicas como representante do Correio da Manhã, jornal já extinto, na Constituinte de 46 (Na Tribuna da Imprensa: crônicas sobre a constituinte de 1946, organização Sergio Braga, 544 págs., R$ 47,00). A coluna no Correio tinha o mesmo título do nome adotado posteriormente para o jornal que Lacerda fundou e dirigiu.

Alguns de seus textos jornalísticos, produzidos durante as mais exaltadas campanhas, são reconhecidamente os de um verrineiro. Com a diferença de que se trata de um verrineiro devastador e convincente, tendo sido em mais de uma ocasião comparado a Evaristo da Veiga por algumas semelhanças na vida de ambos. Todos os seus contemporâneos, porém, reconhecem que era mais grandiloqüente falando do que escrevendo. Evidência de que se preparou para a vida parlamentar era a circunstância de que fez um curso de impostação de voz com a declamadora Éster Leão, mãe da atriz Maria Fernanda, com quem Lacerda teve um tórrido romance. Graças aos recursos de sua portentosa voz e ao raciocínio dialético em que se esmerou, era capaz de falar horas a fio e de silenciar qualquer auditório, por mais hostil que lhe fosse.

Como forma de domar a sua incessante atividade, escreveu contos, traduziu peças de teatro, produziu o melhor e mais triste livro de sua atividade literária, A Casa de Meu Avô, prenúncio das memórias de que sempre cogitou e que nunca começou. Escreveu, traduziu e, depois de cassado, passou a editar livros, atividade que foi, como ele mesmo confessou, o refrigério de sua fase agônica. Somando-se à sua atividade jornalística e parlamentar, pode-se dizer, sem medo de errar, que tinha uma pena brilhante e uma mente privilegiada, tal a capacidade de passar do feroz anticomunismo que professou toda a vida, desde que foi denunciado e se afastou do PCB, até o mais lírico dos textos de autojustificação e de reminiscências, com os quais procurava compensar a agressividade que inundava sua alma inquieta, em permanente ebulição.

É difícil encontrar alguém que tenha vivido com a mesma intensidade de Carlos Lacerda. Impossível quem o tenha feito com maior voracidade. Quando parecia ter perdido uma batalha, das muitas que empreendeu, surpreendia os próprios amigos e aterrorizava os inimigos, sendo capaz de mantê-los meses a fio na defensiva, como fez com Samuel Wainer durante a campanha contra a Última Hora. O que parecia ser uma empresa de motivação comercial, pois Wainer estava sufocando com o brilho de seu jornal os concorrentes, que acusavam o golpe, terminou se transformando na maior tragédia da vida política do país, causando o fato inédito, único e inusitado do suicídio de um presidente da República no pleno exercício do mandato.

Como aconteceu tantas vezes na história do Brasil, sua prisão e a suspensão dos direitos políticos quebrantaram o seu ânimo de forma terrível. Manteve acesa a chama que o incendiava internamente, mas passou a se considerar um frustrado pela política e um fracasso na vida pessoal. Recolheu-se à vida privada, vivendo de espasmos, na medida em que alternava as viagens que adorava fazer e os momentos de depressão que se agravaram com as brigas familiares, com a mulher e os filhos. Aproximou-se novamente de alguns amigos com os quais se reconciliou, depois do exercício de humildade que representou sua tentativa de articular a Frente Ampla, com a participação dos antigos adversários Jango e Juscelino. Buscou novas amizades e passou a prezar, como nunca, o prazer de poder desfrutar de um sentimento que seus adversários dizem nunca ter cultuado, o de cultivar os amigos.

Fora da política, era como se sua vida não tivesse mais sentido nem rumo.

Depois de tantos embates, não tinha conseguido vencer o enigma que esperava desvendar, no dia em que, com as qualidades que tinha, conseguisse realizar o sonho de toda uma vida - ocupar a Presidência da República. O enigma não estava fora dele. Era ele mesmo, com suas qualidades e defeitos, com suas muitas virtudes e os vários pecados cometidos em toda a sua existência.

O leão fora do jornalismo, da política e do governo, recolhido à vida intelectual, transformou-se numa esfinge que ele mesmo não conseguia desvendar. E isto o consumia. O último lampejo de entusiasmo foi proporcionado por seu amigo Ruy Mesquita, com a iniciativa de fazê-lo desnudar-se perante si mesmo, com o Depoimento, o mais revelador de seus textos.

A tarefa de traçar o perfil do gigante coube a John W. Foster Dulles, que, em mais de mil páginas de texto e mais 247 de notas e índices, produziu uma biografia ainda mais alentada que a de Paul Preston sobre general Franco, com quem, por sinal, Lacerda nada tinha em comum. Franco era baixinho, mau orador e cruel. Lacerda, ao contrário, tinha uma bela presença, sendo dono de uma voz estentória, além de impiedoso com os adversários, mas nunca praticou as crueldades de que o caudilho, "por la gracia de Diós", sempre se mostrou capaz.

Muitos de seus amigos, porém, e todos os seus inimigos, nunca tiveram dúvidas de que, se um dia chegasse à presidência, se não fosse como Franco, seria como Salazar, que ele sempre admirou. Como ambos, e como todos os que se julgam predestinados, nunca encarou os inimigos como adversários pessoais. Por isso, podia dizer, como os dois ditadores, que nunca teve inimigos, senão os de sua pátria... Se não era assim que pensava, pelo menos era assim que agia.

O quadro que fica dessa vida vertiginosa é uma espécie de retrato de Dorian Gray. Os que foram capazes de admirá-lo e segui-lo o verão sempre ornado com as qualidades de um homem público invulgar, que poucos igualaram. Os que o abominaram em vida, continuaram a odiá-lo depois de morto, pois não foram capazes de ver nele mais que um carreirista obcecado pela idéia de chegar à Presidência da República, que tantos ocuparam, mas poucos souberam ilustrar.

A esfinge que foi Carlos Lacerda não tinha, como a que guarda as pirâmides, corpo de leão e rosto de mulher. O corpo até podia ser de leão, mas a cabeça seguramente era de gênio. O problema é que o mundo, como no caso dele, nem sempre pertence aos gênios e obstinados, já que os medíocres costumam até ter mais sucesso, com o que Lacerda nunca se conformou. Esta circunstância, no julgamento de alguns, ajudou a consumi-lo: o sonho que sempre acalentou tão obstinadamente, se esvaiu com a ditadura que ele um dia apoiou.


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Editorial do Jornal do Brasil em maio de 1977. Atribuído ao jornalista Nilson de Figueiredo

JORNAL DO BRASIL - Rio de Janeiro, 22 de maio de 1977.
CARLOS LACERDA

Despovoa-se o Brasil de suas lideranças políticas.

>Nossos homens experientes, e historicamente testados, ausentam-se, uns pelo desengano, outros pela proscrição e muitos já pela morte. A renovação está interditada. A prolongada interrupção do processo democrático deixa de encaminhar a tempo as novas vocações para a vida pública esterilizada em mediocridades ditas técnicas.

Com a morte de Carlos Lacerda tudo fica ainda mais evidente.

Morreu um homem que só ocupava cargos para os quais o voto era exigência. Submetia-se, portanto, ao teste democrático da vontade popular. Dele pode dizer-se que soube vencer e que aprendeu a perder o jogo democrático.

O vereador mais votado na primeira Câmara municipal do Rio, o deputado atuante e grande orador parlamentar dos anos 50, o primeiro governador eleito da Guanabara atestam uma constante contribuição de luta por parte de Carlos Lacerda ao longo de todo o processo constitucional de 46.
A gota d’água que entornara a ditadura, aquela famosa entrevista de José Américo de Almeida, insere na demolição do Estado Novo o nome do repórter Carlos Lacerda, que já havia provado o gosto da luta política contra a ditadura.

O jornalista iria, no ano primeiro da nossa redemocratização, ter a função de divisor de águas eleitorais quando tomou a si, como desempenho tático, a tarefa de desmascarar a candidatura própria do Partido Comunista na primeira sucessão presidencial. O êxito custou-lhe, no entanto, um preço que nenhum outro democrata brasileiro terá pago na vida pública. Os comunistas fixaram-no para sempre como a principal referência de sua intolerância ideológica. E Lacerda terá sido, sem dúvida, o mais conseqüente dos nossos democratas, com suficiente convicção e coragem ao dar combate ao comunismo.
Se um líder é habitualmente avaliado pela qualidade e quantidade dos seus seguidores, Carlos Lacerda conseguiu levar mais longe ainda seu inesgotável dom de persuadir: em relação a ele na vida pública brasileira, não houve indiferentes. Sua capacidade de liderança comportava também avaliação através da enorme carga de animosidade de seus adversários. Ninguém foi tão agredido politicamente entre nós, até quando estava fora de competição.

Tufo, porém, que seus adversários lhe negavam como mérito pessoal ele conseguiu comprovar da maneira contundente que era o seu toque pessoal. Como jornalista de combate ninguém ombreou com Carlos Lacerda. O orador transcendeu a todos os confrontos políticos e até no desapreço dos seus adversários havia admiração. O sentido fulminante do improviso fez com que seus adversários no debate parlamentar sobrevivessem apenas em função dele, pois o derrotado no torneio oratório é troféu do vitorioso. O Governador (eleito) desautorizara a lenda de uma vocação apenas demolidora: ele construiu os sólidos alicerces do Estado da Guanabara.

E o empresário – a sua última encarnação no plano da vida pública – também usufruiu da mesma energia criadora e da ampla visão cultural, pois conseguiu converter dicionário em best seller e deflagrou a luta, agora interrompida, contra a impostura do neopaternalismo no campo do direito autoral. O empresário e editor Carlos Lacerda continuava a entender a liberdade como a alma de tudo.
Ele não terá sido um político em dia com a coerência das pequenas atitudes. Mesmo porque as lutas políticas impõem táticas variáveis com as circunstâncias. Ninguém lhe recusará, porém, a aura de o mais coerente dos democratas na denúncia da ideologia e na vigilância política em relação ao comunismo. E essa é, na verdade, senão a única, pelo menos a maior coerência requerida aos democratas em nossa época. Lacerda jamais se aliou aos comunistas, mesmo em questões táticas, embora os tenha tido como inevitável presença política.

Acreditava com razão que a luta política em campo aberto, dentro dos limites da liberdade, desfavorece o comunismo tanto quanto as asfixia ditatorial beneficia as táticas da aplicação marxista. E porque acreditava, agia de acordo com a convicção. Ganhou sempre nas urnas contra os comunistas.

O desaparecimento prematuro de Carlos Lacerda permitirá que se faça, em função dele, o inventário histórico de um longo período de nossa vida contemporânea. Pois logo depois de 30, quando as idéias daquela revolução liberal logo se desfiguraram, temos o jovem estudante, inquieto e participante na cena nacional; a supressão das liberdades em 37 leva-o ao jornalismo atuante; reencontramo-lo mais adiante em 45 na cruzada eleitoral; no ano seguinte com assento na bancada da imprensa na Assembléia Nacional Constituinte; o vereador sucede ao jornalista e, por último, a inquietação o leva a querer o seu próprio jornal. Voltaria de novo à política, pela força de um destino dramaticamente participante, como não abandonaria jamais a atitude de escrever.

Entre os dois extremos e ação, repartiu-se com a mesma energia criadora.

Não terá sido um homem criterioso e deliberadamente justo para com seus adversários. Nunca reivindicou, por certo, essa qualidade humana. Nem se propunha fazer justiça, mas apenas denunciar erros abusos, e cobrar providências das autoridades, ou convicção dos democratas na hora de votar. Ninguém, no entanto, mostrou entre nós tanta coragem de procurar, publicamente, seus mais duros adversários e estender-lhes a mão, antes mesmo de estar a eles equiparado pela perda dos direitos políticos. Antes terá perdido seus direitos por ousar tanto.

O jovem participante da desilusão revolucionária de 30, apenas anteciparia o desiludido que, pelos cinqüenta anos, veria com mágoa idêntica a revolução decisiva – tomar rumo diverso do compromisso original. Mas Lacerda sabia lutar. Não chegou a aprender a fazer concessão no plano dos princípios. Entre o estudante que despertou para a vida pública às vésperas do Estado Novo o homem adulto que assistiu á revolução, de compromisso democrático, confinar-se ao AI-5, aguardamos seu vivo testemunho entre 1945 e 1968: é com esse período que sua morte vem agora identificá-lo, pois que daqui por diante cessa toda a sua influência direta. Como os demais líderes que se retiraram da vida brasileira, cada vez menos favorável à procriação de novos valores políticos.

No entanto, uma população expressiva e um eleitorado numeroso só podem exprimir-se adequadamente nas medidas democráticas, da qual o voto é a unidade padrão.

Carlos Lacerda foi um campeão de eleições. Mas Lacerda está morto e cada vez temos menos eleições.
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